terça-feira, 24 de junho de 2008

O Che na era do consumo

Mesmo tocando especificamente na questão por meio de um entrevistado que aparece pouco antes dos créditos finais, “Personal Che” provoca a reflexão do que é a imagem na sociedade do consumo. Como a mercadoria pode ser “a gosto do freguês” – do inglês, “customized”, ou, do espanhol, “personal”.

O brasileiro Douglas Duarte e a colômbiana Adriana Mariño fogem do didatismo e abordam com originalidade a figura de Che. O documentário percorre Cuba, Líbano, Alemanha, Estados Unidos e China (esqueci algum) conversando com personagens que se apropriaram de maneira particular das idéias, pensamentos e atitudes de Ernesto Guevara, assassinado por agentes da CIA, em parceria com o governo boliviano, em outubro de 67.

Entre as dezenas de entrevistados, apenas dois expressam claramente quais eram as idéias políticas de Che, em direção a que caminhou sua luta e as contradições de quem o relê hoje.

Os entrevistados mostram contradições absurdas: camponesas bolivianas dizem que Che é milagroso, sendo que um vendedor de santinhos afirma que o São Che serve para tudo (de casamentos a pedidos impossíveis). Che, na condição de marxista, era ateu e considerava a religião um desvio no caminho à revolução.

A dupla de documentaristas encontrou também neonazistas alemães que comparam o argentino com Hitler (“ambos eram revolucionários”); conversam com um revendedor de carros nascido em El Salvador mas morando em Nova Jersey que coleciona camisetas de Che como um numismático; o diretor teatral libanês que omite as armas na encenação; e o parlamentarista chinês que exige democracia.

As respostas para quem foi Che são um verdadeiro “Deus nos acuda”. Muitos afirmam que ele lutava pela paz. Contraditório, pois, na condição de guerrilheiro, pegou em armas para construir outros regimes. Outro afirma que ele lutava pela justiça: mais do que isso, pois Che não usou justiça sem valor de sentido, sem propósito ideológico.

O pega mesmo é quando as respostas esbarram na mitologia e na sociedade do consumo. O mito acercou-se de muitos entrevistados (principalmente das senhoras religiosas que consideraram-no um santo).

Mas, uma das reflexões gritantes nas entrelinhas (expressada na fala de um entrevistado pouco antes da subida dos créditos finais) é o poder que o capitalismo tem em transformar símbolos em mercadoria e, neste processo, retirar-lhe o sentido. Um vendedor de camisetas americano diz não saber quem é Che, mas comercializa o produto porque vende muito

Quarenta anos depois, Che virou mito, lenda, fashion, sexy, defensor da paz, nacionalista, igualitário, camiseta, foto do Korba. Tudo, menos o que foi de fato durante a década de 50 e 60: um guerrilheiro revolucionário.

Em tempo: o documentário mostra, de relance, uma curiosidade. Para o público que quiser consumir Che, não reproduzir politicamente Che, tem uma “Carteira de Revolucionário”, vendida a US$ 5 na mesma loja norte-americana que vende as camisetas a rodo.

Em tempo II: uma busca no site da Livraria Cultura indica pelo menos 110 livros com a palavra “Guevara” no título.