segunda-feira, 27 de junho de 2011

Operação Dragão Negro e o blaxploitation

Carlão Reichenbach é quem costuma dizer que não se pode ter preconceito para filmes. Um cinéfilo tem de estar aberto para ser surpreendido até mesmo por produções que aparentemente seriam um mar de obviedade. Uma delas é Operação Dragão Negro, típico exemplar de blaxploitation.

Lançado em 1975, o filme surfa no sucesso de Operação Dragão, que marca a última aparição de Bruce Lee nos cinemas. Trata-se de um filme de ação B com momentos cinematográficos ora pavorosos, ora interessantes.

Provavelmente, o mais instigante em Black Fist (título original) é o cenário: o lendário bairro de Bronx nos anos 70. O Partido dos Panteras Negras Para Defesa Pessoal estava em declínio e denunciava a distribuição de drogas, especialmente heroína, para conter a organização política dos negros – informação extra-fílmica, mas já presente no imaginário por causa de O Gângster e The Black Power Mixtape. O tráfico torna-se paisagem da cidade. Neste cenário, Leroy Fisk (Richard Lawson), um Zé Ninguém, encontra seu lugar ao sol ao participar de lutas ilegais para um empresário branco e ganhar algum dinheiro.

Muito curioso que, mesmo num filme de ação de pouco orçamento e sem muita criatividade cinematográfica, a segregação racial seja tão latente e tão bem desenvolvida a ponto de Leroy, o anti-herói, confrontar-se a todo momento com um negro capataz que faz a segurança do patrão. Preconceito entre os próprios negros: não faltam diálogos com yo nigga, move your black ass e outras colocações raciais. Trechos que, se pensarmos na literatura, remontam levam diretamente ao período da escravidão, quando os negros da casa grande tinham um tratamento diferente dos da senzala.

No filme, temos interessantes ponderações sobre a organização mafiosa e um lutador que, assim como Madame Satã, só tem o corpo como ferramenta de luta. Não há otimismo: quem vence é o detentor do poder, ou seja, o branco. Até mesmo Leroy, um cara consciente que sabe com quem está se metendo ao aceitar tornar-se lutador de rua, sucumbe à sua inocência, leitura indicada por uma cópia descarada da sequência final de Operação Dragão.

Operação Dragão Negro recorre a uma vigorosa trilha repleta de soul, criando uma ambientação. Entre os bons momentos, lembro de uma sequência que, talvez seja loucura de cinéfilo, me levou diretamente ao método de assassinato em Confissões de um Comissário de Polícia ao Procurador da República, clássico do cinema político italiano de Damiano Damiani – nome que Carlão me apresentou numa conversa. Outra interessante cena de morte é omitida numa elipse muito similar ao que Scorsese faria em Os Infiltrados.

Por outro lado, o filme de Timothy Galfas – que divide a direção de “cenas adicionais” com Richard Kaye, seja lá o que isso significou nesta produção – tem vilões caricatos, roteiro cheio de brechas, interpretações irregulares (Dabney Coleman muito bem, Robert Burr horrível), direção primitiva etc.

Mesmo cheio de erros, defeitos e precariedade, Operação Dragão Negro permite leituras mais sofisticadas, especialmente nas relações sócio-raciais dos Estados Unidos.

Em tempo: no Brasil, o filme não está disponível em DVD. Sem problemas: a versão integral do filme está disponível no YouTube [clique neste link].

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Recife Frio, uma obra-prima

Desde que passou no Festival de Brasília em 2009, o curta-metragem Recife Frio, de Kleber Mendonça Filho, faturou quase duas dezenas de prêmios importantes. Exemplo raro no circuito de exibição, um curta vai estrear nos cinemas, acompanhando, a partir desta sexta (24/6), o longa Um Lugar ao Sol dentro da Sessão Vitrine [entenda mais neste link].

Mais do que um filme imperdível, Recife Frio é um marco. Faço minha as palavras do crítico Zé Geraldo Couto: Talvez não seja exagero dizer que Recife frio está para o cinema brasileiro atual como Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado, está para o cinema brasileiro do final do século passado. Ambos são falsos documentários que transcendem os limites do curta, abrem caminhos, iluminam toda uma cinematografia.

Pena que o público de São Paulo não poderá acompanhar o filme nos cinemas. A assessoria da Sessão Vitrine acaba de encaminhar uma mensagem dizendo que "o fato é que tivemos um problema com a programação do cinema". Uma pena, sim, mas não de todo irremediável ao espectador. Recife Frio está disponível no YouTube [assista a íntegra aqui]. Quem adorar o filme, basta comprar o DVD que tem alguns extras interessantes.

O que um espectador antenado não pode deixar de fazer é assistir a essa obra-prima de Kleber Mendonça Filho. Para encerrar este post-convencimento, reproduzo a crítica do filme publicada no Cineclick:


Ficção científica? Comédia? Cinema político? Documentário? Recife Frio, o maravilhoso filme de Kleber Mendonça Filho que acumula 40 prêmios em festivais desde 2009 e estreia dentro da Sessão Vitrine ao lado de Morro do Céu, é tudo isso. Não, é mais que isso.

Já nos créditos inicias, sobe uma cadavérica música que lembra um tema de algum filme de horror dos anos 50 – no final da projeção, descobriremos que se trata de The Web, de Abe Baker e Tony Restaino, tema de O Cérebro que Não Queria Morrer, de 1962. No canto da tela aparece o letreiro “daqui alguns anos...”. E começa o filme em cima de uma estranha premissa: Recife, uma das cidades mais quentes do Brasil, está fria. Caiu um estranho meteorito na urbe que afetou vertiginosamente a temperatura. Em vez dos tradicionais 30º, chegou-se a 10º. O que acontece? De que ordem é esse frio?

Todo o filme é construído por meio de imagens de um programa documental de televisão, Mundo en Movimiento, cujo apresentador tem um sotaque argentino. Os turistas foram embora, os símbolos populares viraram do avesso. Bonecos artesanais que antes mostravam pessoas de biquíni e sunga agora são confeccionados com luvas e calças. Até o administrador de uma pousada que vendia o sol como principal atrativo perdeu todos os clientes. O que acontece com Recife?

Como se relacionar com uma cidade?

Mostrar “o outro lado de Recife” é uma preocupação constante do riquíssimo cinema produzido em Pernambuco. Mais claramente, essa proposta chegou a um público maior em 2003 por meio de Amarelo Manga, um anti-cartão-postal. Nos últimos três anos, o cinema que se produz lá tem refletido sobre o aumento da desigualdade por meio da arquitetura. Alguns exemplos são Um Lugar ao Sol, Eiffel, Praça Walt Disney (este num apuradíssimo registro irônico).

Mas por que Recife Frio é uma obra-prima? Entre uma dezena de razões, porque subverte as convenções dos gêneros cinematográficos para utilizá-los em outro contexto, dando às imagens uma potência incomensurável. Este efeito poderoso fica claro em duas sequências – uma de força social, outra de agressividade poética.

Na primeira, uma família que mora em uma cobertura faz uma inversão na ordem das coisas. A empregada, costumeiramente confinada ao cubículo sem janelas e superaquecido, vai morar na friorenta e ventilada suíte. O filho do patrão, por sua vez, domina o quarto da empregada. Trata-se de um engraçado e violento comentário político sobre a reprodução da arquitetura da senzala em pleno Século 21.

Já a segunda é para entrar nos anais de como fazer cinema. Após constatar que as ruas da cidade estão vazias, o narrador argentino de Mundo en Movimiento questiona: “Onde estão as pessoas?”. E responde: “No shopping”. Em câmera lenta, pessoas numa imensa bolha dentro de uma piscina em um dos pisos do local. A música é o segundo movimento da Sétima Sinfonia de Beethoven - a mesma usada na última sequência de Discurso do Rei. Um dos grandes momentos do cinema brasileiro recente.

Em suma, Recife Frio é comédia, ficção científica, documentário e cinema político. Uma mistura de gêneros que o coloca como um dos filmes mais especiais que circulou por festivais e, felizmente, chega ao circuito comercial dentro da Sessão Vitrine.

Resumindo: um filme porreta!

terça-feira, 21 de junho de 2011

Dirty Dancing e Se Beber, Não Case: os filmes irmãos

Já se vão 24 anos que Dirty Dancing – Ritmo Quente, o irregular musical com Patrick Swayze que termina com a longa sequência embalada por Time of My Life, surfou na onda que reascendeu os musicais. O filme tem personagens carismáticos, conservadorismo que faz tudo terminar em festa e uma direção bem ruim, do nível daquele Emanuele em que a protagonista vem para o Brasil para esquecer uma grande paixão e, no caminho, faz uma cirurgia plástica de corpo inteiro!

Mas o que justifica este comentário 24 anos depois do lançamento e quatro anos da edição dupla comemorativa ter saído em DVD é um detalhe no filme: a insinuação sexual do ménage à trois e a repressão do desejo.

Num verão qualquer, famílias ricas vão para um resort. Entre os Houseman, Baby é uma adolescente que tem o pai como modelo de homem. A estadia e a tal da dança proibida do título vão mudar o rumo da família, especialmente de Baby.

Dirty Dancing – Ritmo Quente é ambientado em 1963, quando, diz um personagem, “os jovens já não querem vir pra cá para aprender fox strot, mas visitar a Europa!”. Um olhar inocente sobre um tempo de mudança. Como demonstra a sequência final, em que pais caretas, esposas fiéis e infiéis, meninos medrosos e meninas que desejam caem na dança.

No fim das contas, são todos reprimidos comportamental e sexualmente. Talvez aquela dança frenética de corpos colados, erótica e lasciva será a única chance em suas vidas de libertar as fantasias e usufruir o desejo. Patrick Swayze, dançarino esguio de movimentos leves e sensual movimento de cinturas, é quase um Eros que joga uma sementinha devassa naquela caretice reinante.

Curioso é que o tratamento do sexo no filme é tão puritano quanto a cabeça dos personagens. Filmar a transa? Jamais! No máximo, beijos ardentes à meia-luz e... corta! Tudo neste filme é insinuação, não exposição. A mais interessante é, em uma cena bucólica em que Baby está dando os primeiros passos como dançarina improvisada e é auxiliada ao mesmo tempo por Johnny (Swayze) e Penny (Cynthia Rhodes). Em outro take, Johnny está sentado do piso observando as duas garotas dançando juntas, de maiô e meia-calça sensual. Nada é dito, fica só nas entrelinhas.

Essa libertação como ato isolado na vida da maioria dos personagens desse musical tem muito a ver com a dos três bêbados em Se Beber, Não Case! e na sequência lançada neste ano. Especialmente o personagem de Stu, o dentista, que, após casar-se com uma prostituta no primeiro filme, passa a noite na esbórnia se divertindo com uma travesti.

No dia seguinte, dá-lhe lamentação. O jeito é esquecer, fingir que não aconteceu. Afinal, foi só uma noite. “O que acontece em Vegas, fica em Vegas” é o lema deles. Assim como o que se passa em Bangcoc deve ficar por lá mesmo. De preferência, enterrado.

Neste sentido, Dirty Dancing – Dança Proibida e Se Beber, Não Case são dois filmes inteiramente diferente que aparentam falar de uma série de coisas. A mais interessante delas é a do homem médio que se reprime diariamente. O sexo é componente primordial. No musical, a dança é o escape. Na comédia, a bebida.

Em tempo: como este texto acabou ficando sério demais, para descontrair em torno de Dirty Dancing coloco o link indicado por Francis Vogner dos Reis na volta para São Paulo após a cobertura da CineOP - Mostra de Cinema de Ouro Preto. Trata-se uma brincadeira de como seria o trailer do filme se a direção fosse de... David Lynch!

segunda-feira, 20 de junho de 2011

CineOP: Público se diverte com piadas de Oscarito e Zé Trindade em chanchadas

Projeção em praça de Nem Sansão Nem Dalila, de Carlos Manga


Que as chanchadas exibidas aqui em Ouro Preto teriam boa acolhida já era esperado. Porém, mesmo realizadas há mais de meio século, quando a televisão no Brasil era ainda uma brincadeira para ricos, chanchadas como Nem Sansão Nem Dalila e Rico Ri à Toa levaram o público ao delírio.

O primeiro, feito por Carlos Manga em 1954, foi exibido no sábado (18/6) na Praça Tiradentes. O segundo, filme de estreia de Roberto Farias em 1957, teve projeção ontem dentro do Cine Vila Rica. Apesar da coincidência do gênero chanchadeiro, são dois filmes diferentes: Manga fez um irônico comentário ao poder (com antológica imitação que Oscarito faz de Getúlio Vargas), enquanto Farias brinca com as diferenças de classes da sociedade carioca.

O denominador comum, porém, é a reação do público, que continuou se divertindo com as piadas de duplo sentido, as peripécias corporais de Oscarito ou os trejeitos da fala de Zé Trindade. As exibições em Ouro Preto demonstram que o humor da chanchada, mesmo com o ar inocente de alguns filmes, continua fazendo rir.

Talvez a chanchada não seja um gênero tão distante assim como imaginamos. Muito do humor televisivo foi construído com esse tipo de filme. Este, por sua vez, tem a inspiração nos sucessos do rádio e na estrutura do Teatro de Revista. Assistir aos dois longas aqui na CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto é traçar uma ponte passado-presente.

Continue lendo o texto no Cineclick.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Em Ouro Preto

Acabo de sair do frio de São Paulo para me aventurar ao frio mais intenso aqui de Ouro Preto. Razão: o início do CineOP - Mostra de Cinema de Ouro Preto, que começa nesta quinta-feira (16/6) com homenagem a Carlos Manga e exibição de O Homem dos Sputinik logo mais.

A cobertura completa e diária estará no Cineclick (leia aqui o texto de abertura). Aqui no Urso de Lata, apenas alguns comentários pontuais durante os cinco dias de festival. A expectativa é que as mesas de debate produzam um interessante olhar sobre a chanchada, principal tema deste ano, contextualizada dentro da produção nacional da década de 1950.

Serão exibidos outros filmes do Manga como Nem Sansão Nem Dalila e Matar ou Correr, ambas ótimas sátiras do cinema americano, em especial do épico Sansão e Dalila e do sublime faroeste Matar ou Morrer.
Link
O CineOP também vai exibir outra chanchada menor, Aviso Aos Navegantes, sobre a qual escrevi para a Revista Zingu há duas edições (leia aqui). A outra será Carnaval Atlântida.

Durante os próximos dias vem mais. Aguardem.

domingo, 5 de junho de 2011

Jacques Demy na Cinemateca

Começou no sábado (4/6) - porque do aniversário do homenageado - uma mostra maravilhosa de Jacques Demy, diretor francês que atuou entre os anos 1960 e 80 e 70, conhecido pela liberdade que se apropriava da música e construia o ritmo fílmico a partir dos diálogos.

Até 26 de junho, na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, serão onze longas, uma porção deles inéditos em circuito [veja a programação completa aqui] e projetados em 35mm. Na correria, deixo para tecer um comentário mais elaborado depois, optando agora apenas pelo registro da retrospectiva e uma sugestão: assistam a Lola - A Flor Proibida, de 1960, e o contraponham a Pele de Asno, de 1970. Sai-se de uma organização dos personagens em torno da música e chega-se num uso radical da canção, mantendo um diálogo distante com o musical hollywoodiano.

Durante a semana sai do Urso de Lata um texto mais elaborado sobre Demy, um Ovni no guarda-chuva redutor da Nouvelle Vague.