quinta-feira, 30 de maio de 2013

O céu de Tabu



Qual minha surpresa ao parar no charmoso café que frequento após o horário de almoço desde que me mudei para o Tatuapé? Que eles, tal como a maioria dos estabelecimentos em São Paulo, decidiram colocar uma televisão. A justificativa: “É que os clientes estão pedindo”.

Mostro-lhes minha decepção. Digo que deixarei de frequentar o lugar. “Mas vamos colocar o volume baixinho”. Não se trata de som, mas da folga ao olho, de não ser condicionado a olhar uma imagem apenas porque ela está lá. “Se você não gostar pode reclamar com as meninas”. Está bem, farei. “Vamos testar se dará certo”. Certamente dará, sou exceção. “Na verdade, não. Outro cliente já reclamou”.

Penso num filme como Tabu, de Miguel Gomes, que deve estrear na outra sexta, 7, caso a monocultura do circuito permita. Há uma cena linda em que os apaixonados Ventura e Aurora curtem um momento idílico. Olham para o céu. As nuvens, repentinamente, ganham formas de animais.

Gomes, em tal sequência, mas também no restante do filme, fala justamente dessa perda da virgindade do olhar, de se encantar pela imagem cinematográfica, de acreditar na “mentira” que ela conta. Isso num contexto contemporâneo, em que entre nós e o mundo existe quase sempre uma tela.

Na porta do tal café o avô segura a criança no colo. Ele aponta para o céu e diz: “Olha lá, o avião”. Aponta para o chão. “Cadê o au-au?”.

Quiçá não esteja tão longe o dia em que um avô mostrará para o neto o céu, o avião, o cachorro apenas numa tela de celular. Em que só conseguiremos nos sensibilizar pelo mundo quando este vier mediado – tal como a paisagem francesa na limusine-camarim de Holy Motors.



sexta-feira, 24 de maio de 2013

Nenhum vietnamita jamais me chamou de toró*



Um pouco depois das aspirações integracionistas da NAACP ou os filmes-veículo de Sidney Poitier. Um pouco antes do boom do blaxploitation, dos heróis desavergonhados e sedutores. Num período de transição do cinema americano – 1966 é um ano chave no desespero dos estúdios em trazer o público de volta às salas de cinema – existe, silenciosa, uma produção documental produzida pelo viés dos negros.

A conjuntura, lembremos, é de mudança do tom. Se no começo da década predomina o discurso de Martin Luther King pela não-violência, em favor das marchas, dos sit-in, de se integrar às porções da sociedade majoritariamente brancas, no crepúsculo dos anos 1960 intensifica-se a ideia da autodefesa (pela violência, se necessário), do orgulho, da ultra-expansão da negritude, do alargamento de uma comunidade de iguais.

O que, grosso modo, chamamos de Black Power.

É preciso, pois, tirar da escuridão alguns desses documentários. A começar por No Vietnamese Ever Called Me Nigger (1968). Filme de estrutura bastante simples. De um lado, entrevista com três veteranos da Guerra do Vietnã – todos negros –, problematizando a óbvia impossibilidade de defender, em território invadido, uma nação que lhe nega a cidadania. Do outro, uma passeata anti-guerra no Harlem, acompanhada do tradicional povo fala.

Salta nesse documentário o calor da hora, a frase dita sem censura, a postura que pensa na intervenção no presente, não na posteridade – e por isso mesmo torna-se histórica. Na tela um cenário em ebulição. Completos anônimos tornam-se sujeitos. Um lunático defende, ao lado da passeata, uma supremacia branca; duas mães discutem como a guerra lhes furtou os filhos; uma senhora esbraveja contra o governo, que nada lhe dá, mas tudo lhe exige.

A câmera nem sempre sabe o que filmar. Essa “imperfeição” dá também vida a No Vietnamese Ever Called Me Nigger: invade-nos como correnteza a sensação de que um presente vivo, fulmegante norteia o sentido das imagens no documentário.



Outro documentário que não merece permanecer alheio ao conhecimento dos cinéfilos, pesquisadores e público em geral é Huey (1968), também conhecido como Black Panthers. Dirigido por Agnès Varda, o filme sobrevive como um imenso documento de uma mudança de pensamento: da postura de pesar à identidade coletiva fincada no orgulho da própria imagem.

Uma abordagem direta, in your face, de uma realidade, editada em duas frentes. De um lado, protestos para a liberação de Huey P. Newton, um dos líderes do Partido dos Panteras Negras para Autodefesa. Do outro, a convenção do partido, realizada no aniversário de Huey, repleta de discursos apaixonados.

Novamente, a força do presente. Um dos gritos de guerra dos manifestantes diz “No more pigs in our communities – off the pigs”, algo como “Chega dos gambés nas nossas vizinhanças – cai fora bota-preta!”. Agnès, genial, ainda constrói dois lindos momentos cinematográficos: ao posicionar a câmera em várias posições durante a convenção dos panteras, encontrando anônimos dos mais diversos perfis, e quando passeia com a câmera dentro de um carro pela vizinhança, ilustrando as imagens com a fala extra diegética de Stokley Carmichael.



No Vietnamese Ever Called Me Nigger e Huey/Black Panthers, facilmente acessível por torrent [baixe aqui], são dois de dezenas de documentários que capturam o calor do momento. É preciso resgatar, exibir e discutir também The Jungle (1967) [assista aqui] , You Dig It? (1967), de Richard Mason, Portrait of Jason, de Shirley Clarke.

Quem sabe o Amir Labaki, que trouxe o belo The Black Power Mixtape para a abertura do É Tudo Verdade em 2011 não se anima em fazer uma retrospectiva desses documentários independentes de temática negra dos anos 60?

*o título deste post é uma tentativa frustrada de traduzir No Vietnamese Ever Called me Nigger, frase extraída da antológica entrevista de Muhammad Ali, na qual declarou: “I ain't got not quarrel with them Viet Cong. No Viet Cong ever called me nigger” (“Não tenho nenhuma conta a acertar com eles. Nenhum vietnamita jamais me chamou de toró”). Traduzir the N word para o português é bastante complicado.

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Blaxploitation: o gênero que obrigou o mundo a olhar os negros

sexta-feira, 10 de maio de 2013

O que se Move - Crítica

O que se Move, de Caetano Gotardo
*originalmente publicado durante a MostraSP 2012 na Revista Interlúdio

Domínio do tempo. Clareza sobre o que mostrar ou esconder, dizer ou omitir. Não temer o ridículo e confiança para sustentar em alto nível os voos atrevidos. Essas são características que fazem de O Que se Move uma promissora estreia de Caetano Gotardo (Areia, O Menino Japonês). Digo promissora mesmo, não dessas legitimações apressadas que nós da crítica por vezes nos sentimos tentados a executar.

Não fosse um adjetivo surrupiado muitas vezes para a defesa de um cinema picareta, “sensível” seria a primeira qualidade a se ressaltar no longa. Prefiro, então, concentrar-me na solidez do conjunto, o que falta a bons filmes de estreia vistos neste ano, tais como Boa Sorte, Meu Amor, Eles Voltam e As Horas Vulgares.

Essa solidez está fincada na dramaturgia. Há também um trabalho casado de direção e fotografia, posteriormente reforçado na montagem, que evidencia e justifica as escolhas.

Chama a atenção a coerência em que as histórias de três mães e seus filhos são elaboradas. Num ritmo que prioriza a calma em detrimento à pressa – um elemento quase de provocação, já que o filme se passa em São Paulo –, O Que se Move tem um punhado de planos e diálogos aparentemente desnecessários. O ganso no parque, as camisinhas sob as folhas, as mães que olham longamente o bebê.

Não há um show room de enquadramentos supostamente poéticos. Eles simplesmente o são porque justificáveis para o conjunto do filme. Se o adolescente pergunta como os gansos preenchem o tempo é porque saberemos cenas depois que o mesmo garoto ocupou seus dias e noites livres nas férias de maneira que irá destruir toda uma família. Vale o mesmo para a inocência com as camisinhas encontradas e o observar atento de um filho pequeno.

Nos momentos intraduzíveis de dor e emoção das personagens, o filme larga o registro realista e se permite flutuar. É quando Gotardo faz aquilo que Christophe Honoré não sabe: musicalizar a vida. Tocadas ou consternadas, as mães não dizem os diálogos, mas cantam. E o filme torna-se lindamente um musical melodramático. Não cai no piegas e dá a chance às personagens em suavizar a dor e a emoção por meio da música. A fruição musical permite a elas viver sentimentos de difícil transformação em palavras. E isso não tem nada a ver com as bobagens fetichistas de Catherine Deneuve tristonha, sacudindo a bolsa e cantando na triste noite francesa em As Bem Amadas.

Mas seria incompleto – não são incompletos todos os textos publicados durante um festival de cinema? – dirigir um olhar unicamente formalista ao filme. O Que se Move é um filme cheio, preenchido de amor e dor, de emoções guiadas pelo instinto cuidador maternal. Os pais são coadjuvantes de uma produção com talento raro em aproximar-se do sentimento de tristeza sem cair nos extremos: nem os da aspereza como Preciosa, nem o fofinho hipster de Miranda July.

O Que se Move é afeto no cinema, não cinema do afeto.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Godard, um artista além do cinema

Jean-Luc Godard é foco de exposição no Oi Futuro

*publicado na edição impressa do jornal Valor Econômico desta terça-feira (7/5)

Jean-Luc Godard. A simples menção ao artista pode causar reações extremas. Autor de filmes como Acossado (1960) e O Demônio das Onze Horas (1965), o diretor de 82 anos é tema de exposição a partir de hoje no Oi Futuro Flamengo, no Rio.

"Expo(r) Godard - Viagens em Utopia" tem projeções, debates, ambientes multimídia e espaços dedicados à apreciação sonora, aspecto fundamental para a compreensão da obra do diretor. Em vez de apostar num conjunto de filmes mais conhecidos, a exposição pretende revelar um Godard pouco explorado.

"Não será caótico, pelo contrário. O objetivo é organizar para o público alguns princípios da base do trabalho de Godard desde meados dos anos 70", diz Anne Marquez, curadora da exposição em parceria com Dominique Païni.

Continue lendo o texto sobre a Expo(r) Godard no site do Valor Econômico.

Textos relacionados:
Depois de Maio, de Olivier Assayas - Crítica
Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague - Entrevista com o diretor Emmanuel Laurent

quinta-feira, 2 de maio de 2013

O Sonho de Wadjda celebra a liberdade, diz diretora árabe

Waad Mohammed, protagonista de O Sonho de Wadjda
*originalmente publicado na edição desta quinta-feira (2/5) do jornal Valor Econômico


Desde a première de O Sonho de Wadjda, no Festival de Veneza de 2012, Haifaa Al Mansour tem ouvido a mesma pergunta: "Como você se sente em ser a primeira mulher da Arábia Saudita a dirigir um longa-metragem?".

Haifaa, porém, não se incomoda com a insistência na questão. "Sinto-me orgulhosa e espero inspirar outras mulheres", diz a diretora. O Sonho de Wadjda, que estreia amanhã no Brasil, conta a história da esperta e desbocada Wadjda, uma menina de dez anos que calça All Star, não cobre os cabelos como manda o costume local e ouve rock.

Seu sonho é comprar uma bicicleta verde e apostar corrida com seu melhor amigo. Há um pequeno empecilho: meninas que andam de bicicleta não são bem- vistas naquele país. Num misto de inocência, rebeldia e coragem, Wadjda questiona os valores de uma sociedade patriarcal.

"Não queria fazer um panfleto, mas sim acompanhar a jornada de uma menina, suas vitórias e derrotas, revelar sua alma", afirma a diretora. Ainda assim, o pioneirismo de seu feito e o impacto simbólico dos questionamentos da personagem acompanham Haifa nos festivais em que o longa é exibido, de Nova York a Dubai.

Continue lendo a entrevista no site do Valor Econômico.