quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

A Política ao Redor

O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho

Leitores do Urso de Lata, um convite: publiquei na revista Caros Amigos de fevereiro um artigo intitulado A Política ao Redor. Como o trocadilho antecipa, o texto busca pensar o que há de político em filmes da safra recente brasileira que têm em comum um desejo de embaralhar gêneros.

A análise segue alguns caminhos já rascunhados em textos tanto deste blog quanto para a Revista Interlúdio, Revista Preview e Cineclick. O texto dá mais atenção aos filmes O Som ao Redor e Recife Frio, de Kleber Mendonça Filho, A Cidade é uma Só?, de Adirley Queirós, Praça Walt Disney, de Renata Pinheiro e Sergio Oliveira, Doméstica, de Gabriel Mascaro, e Trabalhar Cansa, de Juliana Rojas e Marco Dutra.

Uma ausência sentida nesse conjunto de filmes: Câmara Escura, de Marcelo Pedroso. Já rascunhei algumas ideias sobre o curta neste texto [clique aqui] durante a cobertura do Festival de Brasília. É um dos filmes mais efetivos e criativos que fala sobre a cultura do medo. O veículo impresso tem limitações de espaço. No último corte, tive de eliminar a parte que falava do filme, infelizmente.


Realço o convite. O texto não está disponível na internet, então é preciso adquirir a revista nas bancas. Boa leitura.

Textos relacionados:
O Som ao Redor - Crítica
Doméstica - Crítica
A Cidade é uma Só? - comentário

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Oscar2013: breves comentários da premiação

Ben Affleck, que não foi indicado a Direção, segura estatueta de Melhor Filme

Como ontem passei toda a cerimônia fazendo troça do Oscar pelo Facebook, aqui vão brevíssimos comentários com um pouco de seriedade sobre a festa dos funcionários do cinema americano, que não é tão séria assim:


  • A premiação pulverizada deve ter pegado de calças curtas quem participa de bolão. Argo ganhou Roteiro Adaptado, Django Roteiro Original; As Aventuras de Pi, Direção; Lincoln, Ator, e O Lado Bom da Vida, Atriz. A vitória de Argo no Sindicato dos Produtores sinalizava a força do filme de Ben Afleck. Mas dar o Oscar a ele significaria premiar, pela segunda vez em 80 anos, como Melhor Filme uma produção que não teve seu diretor indicado. Foi o que aconteceu.



  • Foi um Oscar de questões bastante americanas por filmes como Argo, Django e Lincoln. Um sutil detalhe: ganhou o filme com traços patrióticos sobre um episódio heroico. Os outros dois, que falam de um calcanhar de Aquiles que é bastante visível na sociedade contemporânea, a escravidão e seus rastros, ficaram no posto de coadjuvante. Com o componente adicional de que Tarantino ganhou o Roteiro Original, como se “seu filme é bom, mas essa história de colocar um negro matando os brancos é um pouco demais para a nossa estabilidade”. Yes, we cannot.



  • A parceria de produção Grant Heslov e George Clooney vai dando certo. Os dois têm se especializado em “filmes de qualidade” sobre grandes temas. Casos de Boa Noite, Boa Sorte, Tudo Pelo Poder e, agora, Argo. De Heslov, porém, o que mais gosto é o longa que dirigiu, O Homem que Encarava Cabras.



  • Christoph Waltz repetiu a estatueta de Bastardos Inglórios e ganhou como Ator Coadjuvante. Problema: ele é tão protagonista quanto Jamie Foxx (discuto esse acesso condicionado de Django no centro do filme neste post aqui).



  • As Aventuras de Pi venceu Melhor Fotografia. Deveria ter ganho um sub-Oscar de Melhor Fotografia em Chroma Key. De quebra, levou Efeitos Especiais. Duas leituras possíveis: a visão equivocada que mistura alhos com bugalhos, caindo no clichê da fotografia como “algo bonito de se ver”, ou uma mensagem direta da indústria de que o caminho é o CGI, tela verde e tudo mais: quem não concordar que se dane.



  • Bastante infeliz a homenagem, durante toda a cerimônia, dos musicais da última década. Chicago é medíocre, Dreamgirls – Em Busca de um Sonho tem seus momentos. Os Miseráveis, contenedor de 2013, é um desastre. Vincente Minnelli e Jacques Demy devem ter se revirado em seus túmulos.



  • Não houve grandes gafes no segmento que homenageia os mortos do ano anterior. Surpreendentemente, Tonino Guerra, roteirista de Fellini, por quem a Academia ficou encantada no fim dos anos 1950 até meados dos 60, e Chris Marker, foram lembrados. Não houve, a menos que tenha comido bola, uma ausência na lista de alguém do quilate de Theo Angelopoulos.

  • Haneke, como era de se esperar, levou apenas o Oscar de Filme Estrangeiro, apesar das outras quatro indicações. Independente de gostar ou não do filme, ficou claro a leitura simplista de Amor nos discursos de apresentação, que salientavam apenas o que está à mão, ou seja, o amor entre dois velhos. Há, porém, o mais importante: a velha Europa que rui.


sábado, 23 de fevereiro de 2013

Oscar: o que pensa um votante da Academia

Os votos do Oscar. "Michael Haneke odeia os seres humanos", explica o votante.

Na semana que antecede a entrega do Oscar, um votante da Academia resolveu abrir a sua cédula de votação, e as justificativas dos filmes escolhidos, para um repórter do The Hollywood Reporter. Enquanto preenchia a cédula, o votante fazia comentários a respeito de suas escolhas. A cerimônia de entrega do Oscar acontece neste domingo (24/2).

Para quem observa o Oscar com olhar minimante crítico, entendendo o papel que ele tem na legitimação de um cinema -- o de Hollywood --, não há surpresa na ausência de profundidade do votante -- que abriu os votos, mas permanece anônimo. Para quem leva o Oscar a sério -- ainda existe quem? --, está na hora de rever seus conceitos.

Abaixo, algumas das justificativas do votante para escolher, ou deixar de escolher, este ou aquele filme [leia aqui no original em inglês]. Comentários que ilustram não apenas um caso individual -- a idiossincrasia de quem acha que Haneke odeia a humanidade --, mas como funciona o senso comum na cabeça de outros membros da Academia.

Melhor Roteiro Original

Amor está automaticamente desclassificado: é apenas uma mulher morrendo, não tem uma história de verdade, e o filme me fez sentir como um nada. Só consigo tolerar troca de fraldas até um certo ponto. [...]

Melhor Direção

Amor é unicamente um filme de ator. Além disso, Michael Haneke me deixou puto da vida no passado porque fez filmes que são muito misantrópico. Ele simplesmente odeia os seres humanos e, a propósito, eu sou um ser humano e não gosto que caguem em mim. [...] Além disso, Spielberg merece um Oscar a cada dez anos em respeito ao que ele faz pela indústria.

Melhor Fotografia

Voto em 007 - Skyfall porque quero ver o Roger Deakins ganhando um Oscar. Bem, eu sou um dos que sabem que foi ele que fotografou o filme, mas muitos votantes na Academia não fazem a menor ideia quem assina a fotografia porque não é explicitado na cédula de votação. Na verdade, eles não têm coragem de votar nele porque é um filme de James Bonde, tipo "Como você pode dar um Oscar a James Bond?"

Melhor Atriz

[...] Também não quero votar numa pessoa que sequer consigo pronunciar o nome. Quvez...? Quzen...? Quyzenay? Seus pais certamente a deixaram num buraco ao dar a ela aquele nome -- Alfabeto Wallis. A verdade é que sua atuação é fofa, mas imatura. Dirigi crianças, eles provavelmente fizeram milhares de takes, mas só montam os melhores. [a atriz se chama Quvenzhané Wallis e foi indicada por Indomável Sonhadora].

Melhor Direção de Arte

[...] Resta-me, então, Anna Karenina, que odiei, e Lincoln. Não votarei no Lincoln para Melhor Filme, mas tenho muito respeito pelas pessoas de Steven Spielberg e Kathleen Kennedy e eu quero ajudar o filme, então darei um voto a ele, aqui vai".

Melhor Documentário em Longa-metragem

É um bom certame, vi todos os filmes. O mais forte é The Gatekeepers, que tem chances de vencer. Todavia, para ganhar um Oscar, você geralmente tem de realizar um filme ou que faça as pessoas se sentirem maravilhosas ou que as façam querer cortar os pulsos; ou seja, que desperte a jovialidade ou a atenção para a importância do tema. Acho que Searching for Sugar Man vai ganhar e vou voltar nele porque eu me senti maravilhoso depois de assisti-lo -- e comprei o álbum de Rodriguez.

Melhor Figurino

[...] Só não quero votar em Anna Karenina, apesar de que provavelmente vencerá porque é exatamente o tipo de filme que ganha essa estatueta. Tem gente que nem viu o filme, mas irá votar nele porque ele tem aquele cheirinho de premiado.

Textos relacionados
Os indicados ao Oscar 2013
Django, um western-blaxploitation-spaghetti
Os Miseráveis, um elefante branco
Análise do Oscar 2012

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Filme da semana

Nosso Pai (Abouna), de Mahamat-Saleh Haroun

Nosso Pai (Abouna, 2002), de Mahamat-Saleh Haroun, diretor nascido no Chade, mas radicado em Paris, França, há bastante tempo.

Haroun teve seu filme mais recente, Um Homem que Grita, distribuído no Brasil pela Imovision. O longa ganhou repercussão ao abocanhar o Prêmio do Júri em Cannes.

Prefiro, porém, a fantasia e o sonho, a música e os rostos, o cheiro local e a africanidade que Nosso Pai emana.

Haroun vem de um país em que o cinema praticamente inexiste -- até 2004 ele era um dos dois diretores de Chade. Um milagre que saia de lá um realizador tão seguro do que quer com o cinema.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Os Miseráveis, um elefante branco

Hugh Jackman em Os Miseráveis

Que desastre é esse Os Miseráveis! Não esperava grande coisa, já que não me iludo com a suposta elegância de O Discurso do Rei, o filme anterior de Tom Hooper. Só não contava com um filme com tantas decisões equivocadas, especialmente da direção.

Não entendo porque Hooper largou um estilo de direção mais acadêmico, que fez de O Discurso do Rei um filme-Mauricinho, mas ainda assim um filme, e foi se “modernizar” com câmera na mão. Até agora não compreendi porque a câmera se comporta como se empunhada por um cinegrafista da Al Jazeera que registra corpos explodindo no momento de um atentado no Oriente Médio.

Hooper não nos deixa ver o filme. Cola a câmera nos atores quase todo o tempo. Hugh Jackman, Russell Crowe, Anne Hathaway, Eddie Radmayne e seus comparsas fazem caras e bocas que parecem ter saído diretamente do curso de atuação do Mojica.

Gasta-se dinheiro com figurinos, figurantes e cenários (sejam eles físico ou CGI), mas são raros os planos gerais. Não há respiro e os planos se sucedem com velocidade voraz, dando a impressão que, apesar de durar quase três horas, o filme tem pressa em acontecer.

No terço final, Os Miseráveis já não sabe mais o que fazer com o que contou até então. Passa um tempo monstruoso delineando o jogo de gato e rato de Jean Valjean e Javert, mas joga tudo para o alto e decide ser um romance. Lembra-se, mais tarde, que existe o conflito entre os dois, então gasta minutos numa cena com Crowe e seu dilema (câmera subjetiva do rosto olhando para o pé no parapeito é brincadeira!).

Para incrementar, um pequeno detalhe: Os Miseráveis é um musical em que a maioria do elenco principal canta apenas o suficiente para tapear. Uma coisa é dar conta de algumas cenas num filme breve. Outra é segurar números longos num filme arrastado e repetindo o mesmo registro vocal dos outros atores. Resultado: Rusell Crowe.

Quando as cenas razoáveis aparecem – as participações de Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter, por exemplo – a minha tolerância já tinha se esgotado. Quando o martírio findou e o filme acabou, não segurei: soltei uma gargalhada acumulada após tantos momentos embaraçosos no filme.

Umas três senhoras na minha frente olharam torto, acho que não gostaram da minha reação. Vai ver elas tinham acabado de assistir a um grande filme, eu é que estou cego.

Mojica e seu curso de interpretação, inspiração para os atores de Os Miseráveis

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Django Livre, um western-blaxploitation-spaghetti

Jamie Foxx e sua vingança em Django Livre

Li que Spike Lee manifestou-se por Twitter a respeito de Django Livre, ainda que não tenha visto e, diz ele, não pretenda ver o filme de Quentin Tarantino. Diz o realizador de Faça a Coisa Certa: “A escravidão nos Estados Unidos não foi um western spaghetti de Sergio Leone. Foi um holocausto. Meus ancestrais são escravos. Roubados da África. Os honrarei”.

Discordo. Vejo em Django Livre um Tarantino filmando um faroeste com o espírito do blaxploitation, cinema de gênero que ofereceu nos anos 1970, especialmente a uma plateia jovem, heróis negros em filmes de ação que não pedem licença para existir, usando a força para inverter a equação da subserviência.

A posição de Lee a respeito do filme que, como nos lembra o título, traz um personagem que se torna livre, está alinhada ao pensamento da National Association for the Advancement of Colored People. A NAACP faz historicamente um tensionamento necessário pela via institucional (especialmente educacional e jurídica até os anos 1960). Foi ela que, quando o costume social era abertamente discriminar e humilhar os negros, problematizou a existência, em 1915, de um filme como O Nascimento de Uma Nação – saga minuciosamente narrada no ótimo livro D.W. Grifith's The Birth of a Nation: A History of the Most Controversial Motion Picture of All Time.

A colocação de Lee tenta apontar um vício de princípio no filme, mas que na verdade pertence a ele: de que um tema da maior importância e ainda sensível como a escravidão só pode ser abordado em filmes de natureza nobre, de grandes propósitos – os dramas. É essa mentalidade que legitima coisas medianas como A Cor Púrpura ou Histórias Cruzadas só pelo tema, já que como cinema pouco se seguram. Impressionante como a discussão que marcou a recepção a muitos dos filmes blaxploitation ainda persiste em 2013.



Sobre Django Livre e seu posicionamento sobre a escravidão, espero que não sejamos levianos em fechar os olhos e deixar de ver que se trata de um filme anti-escravagista, em que o personagem de Jamie Foxx sai de sua condição de subjugado para não só derrotar os inimigos, mas matar a todos.

Porém, há também o raciocínio inverso, tão autômato quanto o de Spike Lee, que não raro parte para a ojeriza a Lee e uma desligitmação sem pestanejar de seus questionamentos “só porque veio da boca de Spike Lee”. Além de preguiçoso, tal raciocínio traz embutido um certo rancor com quem toma posturas radicais, sejam elas de quaisquer ordem. Um prazer maquiado em marretar “esse cara que sempre diz besteira”. Tal como a colocação de Lee sobre Django Livre é simplista – do tipo escravidão “não pode cair nas mãos do cinema de gênero” –, o rancor anti-Spike Lee também é apressado, o caminho mais fácil para não avançar em discussão alguma.

Tirando essa pataguada toda sobre Spike Lee e Tarantino, resta o filme que, a propósito, traz pouco de novidade dentro da própria carreira do Tarantino. Apesar de ser a primeira vez em que ele abertamente mete a mão num faroeste, o filme é mais do mesmo: um tecido moldado num tear de tradição cinematográfica. Estão à disposição um leque de referências (sendo as mais explícitas a Sergio Leone, Enio Morricone e Franco Nero), diálogos ágeis, crueldade pela via cômica, a plástica da violência etc.

O que prende Django Livre é a previsibilidade. Se no primeiro plano vemos Jamie Foxx acorrentado e já na primeira sequência descobrimos que ele se chama Django e é um escravo, basta apenas aguardar quando e como se tornará livre. O caminho até lá tem boas passagens, mas o filme confia demais no humor de Christoph Waltz, inferior a Bastardos Inglórios, em sua primeira parte. Vemos o processo de empoderamento de Django e descobrimos sua real motivação para chegar à fazenda de Monsieur Candy. Damos risada com as pequenas subevrsões e uma bem-vinda falta de vergonha de Tarantino como, por exemplo, na imbecilidade dos membros da Ku Klux Klan ao vestir suas horrendas máscaras brancas.

No geral, porém, fiquei com a sensação de caminhada morosa, especialmente no miolo e o desfecho à sequência engolida por Leonardo DiCaprio. Esse é o risco de fazer um filme que aposta muitas fichas na catarse: preencher as sequências restantes com intensidade tal a desfarçar para o espectador que se está aguardando apenas a parte final do filme. Django Livre não consegue disfarçar que só quer chegar mesmo na vingança de Django.

Falando em vingança, ainda me interessa mais o herói dos bons blaxploitation do que o de Tarantino. Isso porque o protagonismo de Django é do tipo consentido, propiciado pelo seu inesperado parceiro e caçador de recompensas Dr. King Schultz. O escravo passa um bom punhado do filme aguardando a hora de tomar o centro e só o faz quando Dr. King sai de cena.

Me interesso mais pelos caras que apimentam a tensão do acesso condicionado (Shaft), dos que para sempre serão fugitivos (Sweet Sweetback's Baadasssss Song), dos que não pedem licença (Super Fly) ou das que se sobrepõem a quem lhes deu passe livre (Cleópatra Jones).

Textos relacionados:
Blaxploitation: o gênero que obrigou o mundo a notar os negros

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Café de Flore, um filme ignorado

Vanessa Paradis, a mãe em Café de Flore

Fiquei surpreso com a circulação de Café de Flore, terceiro longa de Jean-Marc Valée, diretor do ótimo C.R.A.Z.Y. - Loucos de Amor, ter ficado restrita a festivais menores. No Brasil, o filme deverá ser exibido em março na Semana da Francofonia, no CineSesc.

Café de Flore mostra a recuperação de Valée após o fraco A Jovem Rainha Victoria. Um bom filme que consegue fugir tanto do pieguismo quanto do proselitismo ao falar dos rastros de vidas passadas – uma mãe parisiense de um filho com Síndrome de Down – no presente – a relação de amor de um casal em Montreal.

C.R.A.Z.Y. é melhor, até porque caminha em linha reta, enquanto Café de Flore vai e volta no tempo – só lá pela primeira hora de filme ficam mais claras as relações temporais que o longa está traçando. Ele carrega uma porção de características que um certo cinema independente, especialmente o americano, adora: música para temperar cenas e auxiliar no ritmo, imagens plásticas, personagens mergulhando na piscina para reflexão psicológica, tempo fragmentado etc.

Nas imagens feitas por Valée, vejo um sentimento de afeto genuíno entre os personagens. Isso se sobrepõe a qualquer esteticismo do filme. O amor se sobressai e Valée segura as rédeas – até o uso extensivo de Sigur Rós na trilha não incomoda.

Gosto especialmente como o cinema do canadense lida com a música. Em C.R.A.Z.Y. há a cena sublime de Zach atuando para o espelho ao som de Space Odity, do Bowie. No novo filme, constrói-se todo um subtexto que perpassa diferentes histórias com a música que dá nome ao filme, num arranjo de Matthew Herbert, o Doctor Rockit – clique aqui e veja a setlist do filme.

Voltarei a Café de Flore quando estiver próxima a Semana da Francofonia. Por ora, a canção-tema do filme de Jean-Marc Valée.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Carlão e Herzog, o que é o cinema

Os desenhos de Caverna dos Sonhos Esquecidos

Duas experiências marcantes nesta semana próxima de acabar. Ambas são revisões.

A primeira de Caverna dos Sonhos Esquecidos, de Werner Herzog, que havia visto na Mostra de Cinema de São Paulo em 2011. O filme continua intacto na memória. Logo no comecinho, em que a câmera flutua por um terreno próximo à tal caverna, antes de Herzog começar a narrar o filme com aquele vozerão, o coração bateu muito forte. Fazia tempo que não sentia isso num filme: coração batendo acelerado.

Seguem-se imagens cada vez mais bonitas, até mesmo no improviso da filmagem – uma equipe de quatro pessoas mais os pesquisadores responsáveis pelo mapeamento da caverna, num espaço limitado para locomoção.

No ato final, em que Herzog volta à Caverna Chauvet depois de já nos tê-la apresentado, há o delírio. Sequências dos desenhos feitos pelo homem pré-histórico que datam de mais de 35 mil anos atrás. Representações de animais – cavalos, rinocerontes, ursos – e de uma mulher.

Nessa passagem de Caverna dos Sonhos Esquecidos quase conseguimos tocar as paredes, apesar da distância espacial, e o tempo, a despeito dos milhares de anos que separam a nossa pós-modernidade daquelas imagens.

Não é pouco esse impacto que o filme de Herzog causa. Não é pouco voltar 35 mil anos e tentar responder: por que fazemos arte? Por que temos a necessidade de representar?

***

Se o circuito comercial, com algumas exceções, como o CineSesc, que exibe o longa de Herzog, lançamento da novata Zeta Filmes, continua a decepcionar, existem as mostras. Não as faltam em São Paulo. É um luxo a cidade ter, simultaneamente, retrospectivas amplas da obra de Jonas Mekas e Carlos Reichenbach.

Carlão está na Cinemateca, em lindas cópias em película. Mekas no CCBB e Cinusp – vale tolerar as cadeiras desconfortáveis.

Rever Carlão em tela grande é perceber, com muita clareza, como a noção de “filme de cinema” é forte. Talvez não haja na cinematografia brasileira um diretor que conseguiu tão bem aliar uma rara erudição além-cinema com um tipo de humor baseado em diálogos faceiros, tiradas dos personagens. Ver seus filmes é ficar no pêndulo ora da grande cultura, ora da cultura do mundo.

Amor, Palavra Prostituta cresceu demais na revisão. Encanta um filme que vai das cenas de trepada, close em vagina, pênis, mulheres com biquínis minúsculos na piscina para personagens altamente perturbados, com crises existenciais profundas, ciente da sua ausência de lugar num mundo voltado para a produtividade plena.

Ontem revi Alma Corsária. Que filme monstruoso, estupendo. Os personagens que dançam para colorir seu entorno, a aparição da morte para Torres, a amizade do pobretão com o burguês, o embaralhamento dos tempos passados e do presente, o fisiculturista que se movimenta ao sol de Claire de Lune do Debussy, Jorge Fernando como o marido trouxa...

Assistir novamente ao filme agora, quase oito meses após a morte do Carlão, dá uma sensação estranha: de que o personagem do Torres lembra demais o próprio Carlão. Ou seja, já não há mais ele por aí. Restam, felizmente, seus filmes.

O Inácio estava certo. “O mundo insistirá em continuar sem Carlão. Nosso cinema ainda não sabe direito o que perdeu, inclusive porque não conhece direito o seu trabalho. Acha que ele era um bom sujeito. Era, mas isso era uma parte só. É o primeiro ano em que entraremos sem Carlão, sem poder conversar, divergir, aprender com ele.”

Pasteleiro chinês, John Doo, fisiculturista e Debussy

Em tempo: Alma Corsária foi eleito, numa lista com 51 votantes, o 2º melhor filme brasileiro dos últimos vinte anos. Veja aqui o Top 20 e clique aqui para o texto de Sérgio Alpendre sobre o filme.