sábado, 31 de março de 2012

Cukor veterano: o homem que filma como Kenny G

Jacqueline Bisset em cena de Rich and Famous, último filme de Cukor


Lendo a biografia crítica de John Cassavetes, escrita por Thierry Jousse em 1992, fica claro não só o abismo entre a velha e a nova geração do cinema americano nos anos 1960 e 1970, mas porque acho os últimos longas de George Cukor enfadonhos.

Alto lá, segurem os impropérios porque não se fala aqui do Cukor dos anos 50 – que também me dá sono, mas no qual vejo méritos.

Falo do Cukor engessado no tempo, do cineasta que, quando o mundo (e o cinema) girou 180º no hiato mais brilhante da história de Hollywood, fez filmes com aura de plástico, romances com pouquíssima ou nenhuma contradição dos personagens – estes, aliás, pareciam viver num mundo paralelo.

São assim seus cinco últimos filmes: Travels With My Aunt (1972), Love Among the Ruins (1975), The Blue Bird (1976) – disparado o mais iludido de todos –, The Corn is Green (1979) e o derradeiro Rich and Famous (1981), que Cukor lançou quando batia os 80 anos – morreria em 1983.

De todos os grandes diretores do cinema clássico que continuaram trabalhando nos anos 1970 – assunto que já foi debatido nesse post aqui e será discutido aqui no blog nas próximas semanas até o início do curso Cinema Americano: Anos 70 –, Cukor é o que mais parou no tempo (o que não é um problema em si, já que Billy Wilder continuou fazendo bons filmes nos mesmos moldes de antes) e o que mais filmes insosso fez.

Mas onde entra Cassavetes, citado no início deste texto, na conversa? Pelo seguinte: depois de reafirmar o espírito de liberdade que paira no processo e no resultado em filmes como Shadows, Faces, Husbands ou A Woman Under the Influence, Thierry Jousse chega à seguinte chave de leitura:

“(...) tem vontade de filmar a vida de pessoas verdadeiras.”

Esse desejo que Cassavetes manifesta com seus filmes já no finalzinho da década de 1950 se torna moeda corrente no cinema jovem das décadas seguintes. E aí entra Cukor: quando o cinema americano decide aterrizar na Terra e falar de gente de verdade, Cukor constrói fábulas (The Blue Bird), histórias de superação (The Corn is Green), comédia frívola (Travels With My Aunt), romances de final feliz (Love Among the Ruins e Rich and Famous).

Claro, seria heresia criar escalas de valoração apenas na comparação de duas escolas distintas como Cukor e Cassavetes – o primeiro representa a continuação, enquanto o segundo é pela ruptura. Mesmo assim, é curiosíssimo como Cassavetes fez um cinema inquieto num momento tal, enquanto Cukor sentou na sua confortável cadeira do comodismo.

Um comodismo cinematográfico mal executado, diga-se de passagem, porque Mankiewicz continuou fazendo o de sempre, mas de maneira digna.

O crepúsculo da carreira de Cukor, em especial seu último filme como diretor se parece com uma longa canção de Kenny G: sensaborão. Meu lado venenoso ainda me instiga a dizer o seguinte: o plano final de Rich and Famous – duas velhas amigas centradas frente a lareira prometendo tirar umas férias do mundo, enquadradas num contraluz bizarro –, me dá a sensação de que Kenny G pintou no set do filme, roubou a câmera de Cukor e resolveu ele mesmo filmar o “bom gosto”.

Abaixo, o trailer de Rich and Famous:



Textos relacionados:
A comédia screwball de Billy Wilder
Shadows e Veludo Azul: os filmes em seu tempo

quinta-feira, 29 de março de 2012

Billy Wilder e o screwball com Jack Lemon e Walter Mattau

Dos mestres do cinema clássico americano que seguiram dirigindo após a mudança do estado das coisas nos anos 1960, Billy Wilder é um dos poucos que seguiu fazendo filmes realmente bons.

George Cukor entrou num clima nostálgico recheado por filmes sonolentos; William Wyler foi irregular; Mankiewicz preferiu manter-se na superfície e num discurso moralista. A exceção, além de Wilder, é Elia Kazan, que fez dois filmaços pós-anos 70, The Visitors (1972) e O Último Magnata (1976).

Kazan e o assunto do que os grandes estavam fazendo na década de 70 fica para depois, porque o propósito deste post é o antepenúltimo filme de Wilder, A Primeira Página (The Front Page), feito em 1974. Uma refilmagem do longa homônimo de 1931, que por sua vez fora adaptado por Howard Hawks em 1940 sob o título de His Girl Friday – que eu acho bem chatinho.

Com Wilder, é uma comédia screwball que “discute” a “relação” intempestiva de um editor sedento por furos (Walter Mattau) e um repórter de primeira linha (Jack Lemon) que decide abandonar o ramo para se casar com a linda Peggy (Susan Sarandon), mas tem de brigar com a resistência do patrão.

A screwball comedy, que no Brasil convencionou-se chamar de comédia maluca, geralmente envolve um homem e uma mulher, um mais comportado, outro agressivo. Na perfeita definição do famoso crítico Andrew Sarris, trata-se de “comédia sexual sem sexo”. Nisso A Primeira Página mostra uma de suas genialidades.

O grande “casal” do filme são dois amigos, o editor e o repórter, mas que agem com emoções de namorados, que se amam e se odeiam – não conseguem ficar juntos sem brigar, mas separados quase perdem o sentido da existência. Não há uma insinuação de homossexualidade (que o roteiro deixa para um outro repórter do grupo que fica jogando pôquer e esperando a notícia acontecer para correr atrás dela como urubus).


Jack Lemon, o repórter que quer largar o osso, e Walter Matthau, que tenta impedi-lo

É muito interessante como Wilder e seu filme roteirista I.A.L Diamond – juntos escreveram doze filmes entre 1957 e 1981 – conseguiram trabalhar com o screwball entre dois homens, diferente do filme de Hawks, que tinha Cary Grant no papel do editor e Rosalind Russell como a repórter que queria se casar.

Claro, parte da diversão do filme vem da dupla Lemon/Mattau, que trabalhou junta em vários filmes de Wilder e continuou a parceria nos anos 90, quando Wilder já tinha se aposentado. Mas há também o mérito da direção e do roteiro: Wilder/Diamond tinham pena afiada para escrever diálogos e Wilder sabia como filmá-los.

Billy Wilder continua sendo um diretor que a cada filme visto ou redescoberto me deixa boquiaberto. Como ele conseguiu fazer tanta coisa boa flutuando nos gêneros? Como não chamar de genial o cara que faz um grande melodrama como Farrapo Humano (1945), um filme-espelho do cinema como Crepúsculo dos Deuses e comédias como Quanto Mais Quente Melhor (1959)?

Os filmes de Wilder são como as canções de Arnaldo Baptista: fonte de prazer contínuo. Em importância para suas respectivas artes, o plano com o diálogo “Mr. De Mille, I'm ready for my close-up” está no mesmo nível de “Não gosto do pessoal da Nasa. Cadê meu disco voador”.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Um país e um shopping center no É Tudo Verdade

Filme mapeia traços de índios sequestrados no Chile e exibidos na Europa como animais


“Não podemos nos parecer com um shopping. O Chile é um país com raízes”. A fala de um ex-diplomata do governo chileno entrevistado para o documentário Calafate, Zoológicos Humanos resume com simplicidade a importância da vertente do documentário histórico, que se volta ao passado a fim de buscar reflexões no presente e evitar abusos horrores no futuro.

Um país sem memória não é um país, mas sim um shopping: sem lugar, sem raiz, sem capacidade reflexiva. Sem espelho. A importância da memória, especialmente a de episódios guiados por regimes de exceção ou por um eurocentrismo preconceituoso, vale para qualquer país. A impressão, porém, é que os documentaristas chilenos têm percebido e tomado essa pretensão com mais afinco, vide também o que Patricio Guzmán fez com Nostalgia de la Luz.

Apesar das nobres intenções e da vital importância, Calafate, Zoológicos Humanos não é tão cinematograficamente relevante quanto o documentário de Guzmán, exibido na Mostra de São Paulo em 2010, mas que permanece inédito no circuito comercial.

Continue lendo a crítica de Calafates, Zoológicos Humanos na Revista Interlúdio.

sexta-feira, 23 de março de 2012

O último filme de Chico Anysio

Chico Anysio em cena de A Hora e a Vez de Augusto Matraga

O Chico Anysio que a gente conhece e vai sentir saudades mesmo é o humorista de personagens antológicos, sejam O Baiano e os Novos Caetanos nos anos 1970 ou O Profeta na década de 80. Vale lembrar também do “sedutor” Alberto Roberto, do Professor Raimundo, do Coalhada, do Popó e muitos outros. Contudo, a memória recente que ele me deixou é a breve e hilária participação em A Hora e a Vez de Augusto Matraga.

Chico Anysio é o Major Consilva, o manda-chuva de um vilarejo no sertão mineiro que submete a seus interesses toda a população local. Segunda adaptação para o cinema do conto de Guimarães Rosa, A Hora e a Vez de Augusto Matraga foi exibido e saiu vencedor do Festival do Rio em 2011 – uma decisão para lá de exagerada –, mas ainda permanece inédito no circuito comercial.

Breve na duração, mas marcante na qualidade. A participação do humorista é de uma eficácia igual a de Moacir Franco como o delegado em O Palhaço – a diferença é que Moacir estava em um filme bom, enquanto Chico num filme mediano com cacoetes de narrativa televisiva. Impressionante que mesmo doente e debilitado, praticamente permanecendo sentado durante toda a participação, Chico tem mais presença de cena do que muito ator cujo roteiro é mais generoso e lhe reserva maior tempo na tela.

Sua participação saltou tanto do restante do filme que o júri improvisou um Prêmio Especial de Ator Coadjuvante só para reconhecer o que Chico tinha feito. Foi um momento marcante na cerimônia de encerramento no Festival do Rio, que às vezes se preocupa demais com acessórios e deixa o que importa de lado.

Em cadeiras de rodas, o humorista foi conduzido ao palco, brincou que “o prêmio seria um estímulo para um ator em começo de carreira como eu” e ironizou a própria fraqueza (“Lá embaixo, eu pensava: por favor, não me deixem aqui sozinho”).

Chico Anysio morreu nesta sexta-feira (23/3), às 14h52, após 112 dias de internação. Mas assim como Tonino Guerra, outra perda desta obscura semana, o que ele nos deixou é rico o suficiente para não nos esquecermos jamais de como era bom dar risada com Chico.

Chico Anysio como o Professor Raimundo

Textos relacionados:

quinta-feira, 22 de março de 2012

Tropicália abre festival de documentários É Tudo Verdade

Capa do álbum de 1968 de Gilberto Gil, no auge do Tropicalismo como movimento

 Começa nesta quinta-feira (22/3) o É Tudo Verdade, mais importante vitrine do cinema documental na América Latina. Tropicália, filme que monta um mosiaco da produção musical dentro do Tropicalismo, abre o festival hoje. O longa-metragem será reapresentado para o público na sexta-feira às 21h no CineSesc.

Novamente acompanharei o festival, que no ano passado me revelou o trabalho fundamental de Marina Goldovskaia, que inclusive tem um marcador (consulte no menu à esquerda) só para ela neste blog. Além das críticas, que serão publicadas na Revista Interlúdio e reproduzidas parcialmente por aqui, este também também integro, ao lado de Andrea Ormond, Carlos Eduardo Lourenço Jorge, Cid Nader e Luciano Ramos, do Júri da Crítica - Prêmio da Crítica.

Pra começar, quem quiser conferir um pouco sobre o bom Tropicália, espie a crítica neste link aqui. Tem também a entrevista que fiz com o diretor Marcelo Machado para a Revista Rolling Stone [clique e leia aqui] na qual ele comenta que até pensou em tornar sua produção em um filme-acontecimento anarco-tropicalista.

Bem-vindo, É Tudo Verdade!

quarta-feira, 21 de março de 2012

Morre Tonino Guerra, roteirista de Antonioni e Fellini

Tonino Guerra escreveu Trilogia do Silêncio de Antonioni

 A Cinecittà News informa que morreu Tonino Guerra, roteirista da Trilogia da Incomunicabilidade de Antonioni (A Aventura, A Noite, O Eclipse) e da fase mais próxima do final de Fellini (Amarcord, E la nave va, Ginger e Fred).

Óbvio que a morte de Tonino Guerra é uma grande perda para o cinema, mas a maneira mais justa de homenageá-lo é, além de render textos elogiosos e (re)apresentá-lo aos leitores, redescobrir seu trabalho em parceria não só com Antonioni e Fellini, mas também com Monicelli, Tarkovski e os Irmãos Taviani. Há também seus livros para serem lidos.

Depois de Theo Angelopoulos, 2012 resolveu provocar outra baixa de peso no cinema (a propósito, Tonino Guerra também trabalhou com Anghelopoulos em alguns filmes, entre eles o mais recente A Poeira do Tempo).

Pra recordar, a cena final de O Eclipse:

sexta-feira, 16 de março de 2012

Projeto X - Crítica

Se Beber, Não Case e Projeto X – Uma Festa Fora de Controle são filmes gêmeos. Além da óbvia constatação de que Todd Phillips assina a produção de ambos (além da direção do primeiro), os dois trabalham na mesma frequência com o humor (o que pode ser lido por uns como “vou correndo para o cinema” tanto como “vou passar longe do cinema” para outros).

Mais importante, porém, é o fato de que ambos têm material para se falar por horas sobre a repressão sexual e social. A gênese dos personagens do filme-ressaca de Phillips é a mesma dos adolescentes do filme-testosterona de Nima Nourizadeh: os que se permitem enfiar o pé na jaca apenas uma vez na vida.

Em Se Beber, Não Case – seja a Parte I ou II –, os meninos grandões, adultos infantilizados, enchem a cara na despedida de solteiro de um membro da turma e se metem numa série de roubadas – em Vegas no primeiro filme, Bangcoc no segundo. O público descobre ao mesmo tempo que os próprios personagens o que se passou na fatídica noite da qual ninguém guarda lembrança.

Continue lendo a crítica de Projeto X na Revista Interlúdio.

O cachorro em Projeto X é o comic relief correspondente ao macaco de Se Beber, Não Case

quinta-feira, 15 de março de 2012

O Poderoso Chefão: 40 Anos

Pré-estreia de O Poderoso Chefão aconteceu em 15 de março de 1972 em Nova York
 
Só para lembrar aos fãs da trilogia O Poderoso Chefão, a Revista Interlúdio, projeto no qual sou um dos colaboradores, publicou um imperdível dossiê cobrindo diversas fases da carreira de Francis Ford Coppola, entre eles o próprio The Godfather.

O link para todos os ensaios é este: http://www.revistainterludio.com.br/?p=2557

Boa leitura!

quarta-feira, 14 de março de 2012

Glauber Rocha: 100 anos (?)

Trocando as bolas, este editor errou as contas e publicou que Glauber Rocha faria em 2012 cem anos. O blog pede desculpas pelo erro bizarro de cálculo e corrige a informação: há 73 anos nascia Glauber.

Obrigado ao leitor anônimo que puxou a orelha deste escriba. Pensei em culpar a matemática, mas não adianta: seria como o Deivid tentando explicar a perda do gol debaixo da trave!

Mas o post ainda vale: abaixo, alguns vídeos com o diretor de Terra em Transe, A Idade da Terra, Deus e o Diabo na Terra do Sol, entre outros, polemizando:














sábado, 10 de março de 2012

Cairo 678 - Crítica

Cairo 678 cai naquela categoria de filmes que uma pessoa consciente do estado das coisas fica feliz pela existência, mas quem tem apreço pelo cinema não consegue deixar de notar como o resultado é falho. Um melodrama político sobre uma causa nobre, mas com tintas tão deslocadas que chegam a anular a força do discurso.

É a típica produção que o crítico de cinema torce para que o público não tome o texto como juízo final, desistindo de conhecer o filme por causa da avaliação crítica. Mesmo assim, quem escreve não pode (nem deve) divorciar-se da obrigação de apontar falhas, cegando-se por causa da nobreza do tema. É urgente um filme que discute o machismo e toma uma posição feminista para tal, o que não anula, porém, a necessidade de problematizar o sentimentalismo no qual o filme obriga suas personagens a mergulharem.

Torço para que os que lerem este texto vão antes ao cinema, assistam a Cairo 678 e, então, venham dialogar com o que aqui está dito.

Continue lendo a crítica de Cairo 678 na Revista Interlúdio.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Psicopatas e Zumbis no cinema: Frightmare e Johnny Zombie


Os zumbis e os psicopatas tomaram de assalto o CineSesc ontem na ótima Sessão do Comodoro, projeção mensal de filmes pouquíssimo conhecidos organizada por Carlos Reichenbach, o grande diretor-cinéfilo de produções fundamentais como Filme Demência, Lilian M: Relatório Confidencial, Anjos do Arrabalde e do subestimado Falsa Loura.

Quem abriu a sessão foi o curta-metragem A Morte e a Morte de Johnny Zombie, do crítico e pesquisador Gabriel Carneiro, um dos ativos colaboradores da Revista Zingu. Tão latente quanto a precariedade de recursos está o exercício de linguagem no cinema de gênero, algo que infelizmente alguns festivais parecem não ter a coragem de valorizar, posto que o curta teve poucas janelas de exibição em 2011.

Narra-se a transformação em zumbi de um homem atingido por um vazamento químico. Parte da história é contada em câmera-subjetiva, ou seja, aquela que assume o olhar do personagem, recurso que Dario Argento, o mestre, usou antologicamente em Terror na Ópera na cena em que mostra um corvo sobrevoando o teatro para, em seguida, repetir o movimento com a câmera, imitando o movimento da ave.

O longa que Reichenbach programou nesta sessão Comodoro foi Psicopatas (Frightmare, 1974), sobre o qual não sabia nada e que se revelou como uma grata, mesmo que irregular, surpresa. (Parênteses: Carlão é, além de um grande diretor, um cinéfilo com olhar muito apurado e generosos para o cinema, que constantemente compartilha leituras no seu blog Olhos Livres).

E Psicopatas esbarra, com muita ironia, numa questão que continua importante: quem detém o poder de determinar a sanidade (ou a falta dela) em uma pessoa? Como o manicômio funciona como instituição que entra quando o corpo social não dá mais conta de absorver o que foge da norma?




Mais uma vez, o cinema de gênero arrisca-se a fazer comentários e proposições. No caso deste filme, fala-se de canibalismo e a suposta reincorporação à sociedade de um casal que passou 15 anos num hospício: ela, por cometer os atos; ele, por acobertá-los.

Interessante, mas irregular, o filme tem momentos muito inspirados – sendo o principal o plano final, de solução brilhante – e outros nem um pouco – como as elipses bizarras ou os personagens-muleta que entram para explicar o imbricado enredo.

Mas é cinema de horror feito decentemente e com ganchos para buscarmos diálogo com o estado das coisas.

Não deixa de ser curioso, porém, as frases trazidas pelo pôster original: “Sanguinolento, brutal e muito nojento”. Sinceramente, acho que o crítico autor dessa frase estava com a cabeça na lua ao escrever isso.

Abaixo, a versão integral de Psicopatas no YouTube – já que o filme, obviamente, nunca foi lançado no Brasil:



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Dario Argento, mestre do horror, fala sobre Dracula 3D com exclusividade

terça-feira, 6 de março de 2012

Dossiê Coppola – ensaios do diretor de O Poderoso Chefão e Apocalypse Now



Francis Ford Coppola, o diretor de obras-primas dos anos 1970 que ultimamente tem sido lembrado mais como dono de vinícola, é alvo de um amplo e maravilhoso dossiê da Revista Interlúdio, projeto que integro com muitíssimo orgulho [acesse aqui a home page do dossiê].

O Dossiê Coppola repete os moldes do que foi feito em janeiro com Alfred Hitchcock. São seis ensaios aprofundando questões do cinema do diretor das obras-primas O Poderoso Chefão, A Conversação e Apocalypse Now.

Abre o dossiê o ensaio “Breve Introdução ao Cinema de Francis Ford Coppola”, escrito pelo crítico Sérgio Alpendre, editor da Interlúdio, sobrevoando características gerais da carreira do diretor, roteirista e produtor.

Na sequência, “Anos 60: quando Coppola tornou-se um homem”, escrito pelo editor deste Urso de Lata comenta os primeiros filmes do período de formação do cineasta, em especial o grande Caminhos Mal Traçados (1969) e o divertido Agora Você é um Homem (1966), passando também pelo desastroso musical com Fred Astaire, O Caminho do Arco-Íris (1968).

“Sombras na Filmografia de Coppola”, de Leandro Cesar Caraça, esclarece a função de Coppola em diversos outros filmes além dos que assina como diretor ou roteirista, seja produzindo ou tapando buracos, como aconteceu no início da carreira, ou sendo apadrinhado por Roger Corman.

Por sua vez, o ensaio “A Saga de Michael Corleone”, também assinado por Alpendre, mergulha na trilogia do Chefão, apontando a melancolia do personagem e o caminho sem volta assumido da família Corleone.

As relações entre literatura e cinema são analisadas em “De Coração das Trevas a Apocalypse Now”, no qual Cesar Zamberlan escrutina a narrativa d olivro que é ponto de partida para mais uma obra-prima de Coppola.

A década de 1980, quando o sonho da Zoetrope é definitivamente enterrado, ganha análise de Luiz Carlos Oliveira Jr. no ensaio “'Nothing Gold Stay Gold': Coppola nos anos 80”, em que O Fundo do Coração e Vidas sem Rumo são contrapostos à produção setentista: a melancolia

Para encerrar, curiosidades da extensa carreira de Coppola são postas em lista no “ABC de Coppola”. Como cereja no bolo, filmografia completa comentada por diversos colaboradores da Revista Interlúdio.

Só posso convidar aos leitores que confiram o extenso Dossiê Coppola, devorem o cardápio com regozijo e que encontrem nos textos aberturas para ver, rever e reposicionar (positiva ou negativamente) a obra de Francis Ford Coppola.

Marlon Brando em Apocalypse Now

segunda-feira, 5 de março de 2012

Drive - Crítica


"Não carrego armas. Apenas dirigjo", diz Ryan Gosling, protagonista de Drive


Drive é um filme que permite um diálogo entre Francis Ford Coppola, Brian De Palma e Abel Ferrara. Tem-se neste que é o filme mais vigoroso e pulsante lançado (com muito atraso) no Brasil até este mês de março o trabalho de composição de O Poderoso Chefão, a violência sem volta de Scarface e o mergulho na podridão de um Vício Frenético.

Mas este filme do dinamarquês Nicolas Winding Refn que muito antes de estrear no circuito brasileiro já ganhou status de cult, seja pelas exibições no Festival do Rio ou pelos compartilhamentos e fóruns da internet, é uma fábula macabra sobre Los Angeles. E isso dá cores um pouco diferentes dos seus colegas que falaram da podridão na Flórida ou em Nova York.

Faltou chamar para o diálogo outro filme: Chinatown, de Polanski, este sim um comentário sobre as bases corruptas e o histórico de crimes e ameaças que está no solo (literalmente) de Los Angeles.



Pronto, é com esses quatro filmes que vejo Drive estabelecendo pontes – apesar de, na entrevista a amigo Paulo Gadioli publicada na Rolling Stone, o compositor Cliff Martinez afirmar que O Massacre da Serra Elétrica foi uma das referências de Winding Refn.

A produção que o dinamarquês fez nos Estados Unidos, mas que passou (injustamente) ao largo do Oscar, numa clara demonstração do “humor” da Academia e do que se pretende manter ignorado à margem, é um filme de herói violento que se parece um OVNI no panorama do que se faz hoje em termos de filmes sobre a máfia ou centrado num personagem justiceiro.




A relação com o tempo narrativo é um tanto sinfônica neste filme. “Nada acontece”. Na verdade, tudo acontece. Prepara-se o terreno e ambienta-se o espectador no que está por vir. Só que num contexto de audiências ávidas por acontecimentos e eventos, Drive é tido como um filme lento, em que muita gente vai sair falando que é “chato, mas a fotografia é linda”.

(Parênteses: não deixa de impressionar como a velocidade e o desempenho autômato tornou-se uma quimera em cada pequeno espaço das nossas vidas, inclusive no futebol. Jogadores que cadenciam e que constroem com vagar uma jogada invariavelmente ganham a pecha de “desligados” ou “atrasam o time”. Parece não haver mais tempo para um ritmo que não a da velocidade limite, seja na narrativa cinematográfica, no futebol ou até mesmo no trânsito de São Paulo, que acaba de vitimar mais um ciclista em nome da “fluidez” ditada pelo automóvel, o corpo-máquina. Fecha parênteses).




Mas Drive é mesmo um filme de herói em conflito construído com um apuro ímpar pela beleza dos planos. Porque o Driver que Ryan Gosling performa é uma espécie de John Rambo atirado num filme que glorifica uma das bases da linguagem do cinema: a relação de tempo e espaço. O herói tem de voltar, contra a própria vontade, à era da escuridão e revisitar um passado que não mais lhe interessa. Não será mais possível cumprir o que diz no começo do filme: “Eu não entro no jogo enquanto você estiver roubando. Eu não levo arma comigo. Eu dirijo”.

E como qualquer herói de um filme que não busca a conciliação, há o sacrifício. O que torna a música de encerramento dos créditos de uma precisão absurda. Diz a letra: “Real human being, and a real hero”.

Não dava para ser de outro jeito.

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domingo, 4 de março de 2012

O Açougueiro de Lyoon

Como o É Tudo Verdade, o mais importante festival de documentários da América Latina, aproxima-se (a abertura acontecerá em 22 de março), este post é uma espécie de “esquenta”, um aquecimento para o festival, que ano passado realizou uma brilhante retrospectiva da russa Marina Goldovskaya.

Voltando ao “açougueiro de Lyon”, o título deste post, a nem um pouco louvável alcunha foi imputada a Klaus Barbie, um dos maiores criminosos de guerra e responsável pela execução de sofisticadas técnicas de tortura contra judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Com o fim do confronto, trabalhou como “consultor” para o governo norte-americano em repressões anti-comunistas, mas mudou-se para a América do Sul no fim dos anos 1950.

Estabeleceu-se na Bolívia e, de lá, tentou implementar um novo Reich. Antes disso, já havia emprestado seus conhecimentos de torturador para regimes ditatoriais em países sul-americanos. Sua história é retratada no interessante documentário O Inimigo do Meu Inimigo (My Enemy's Enemy, 2007), lançado em DVD no Brasil pela Imagem Filmes.

Na linguagem, um documentário tipicamente americano, conduzido no talking head, ou seja câmera registrando os depoimentos dos entrevistados, bem diferente, então, do que o cinema documental brasileiro tem feito – mas isso é outra história. O que interessa, de fato, em O Inimigo do Meu Inimigo é o personagem e os acontecimentos.

Em vez de se dedicar a uma afirmação superficial do Bem e do Mal, o filme de Kevi McDonald prefere as áreas cinzas. A saber: o papel que oficiais e burocratas nazistas tiveram, após o término da Segunda Guerra Mundial, no xadrez político conduzido pelos Estados Unidos. Com o fim da guerra, Hitler deixou de ser o grande inimigo norte-americano, substituído pela União Soviética no contexto de estabelecimento da Guerra Fria.




E quem conhecia como ninguém os soviéticos? Os alemães! Como lembram as entrevistas em O Inimigo do Meu Inimigo, os EUA convenientemente ignoraram as atrocidades nazistas, contrataram seus “serviços” e mais, deram-lhes proteção.

Aos poucos o documentário chega onde quer: até mesmo a condenação de um criminoso como Klaus Barbie integra o teatro da política internacional. É obviamente indiscutível a dor das famílias torturadas por ele e a justiça em sua prisão perpétua decretada em 1987. Mas e o colaboracionismo dos franceses que entregaram a creche em que 44 crianças foram mortas (o que rendeu o apelido de “açougueiro de Lyon” a Barbie)? Ou a proteção dos EUA?

Para apimentar mais o caldo: o que difere as atrocidades de Barbie com as do exército francês na Argélia?

São algumas questões que o documentário O Inimigo do Meu Inimigo inteligentemente coloca.

Em tempo: quem defendeu Barbie no julgamento na França foi o advogado Jacques Vergès, de formação maoista, personagem tão ou mais interessante que o açougueiro no documentário. Na fila de clientes de Vergès está Carlos, o Chacal, retratado na obra-prima de Olivier Assayas, Carlos.

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sábado, 3 de março de 2012

Na Carne e na Alma: um atentado moral

Adoraria que a frase fosse minha, mas a autora dessa definição de assassinato moral é Andrea Ormond, editora do fundamental blog Estranho Encontro. A pesquisadora usou o termo para definir o filme mais conhecido do hoje pouco conhecido Alberto Salvá, A Menina do Lado, o longa que é provavelmente a porta de entrada de todo mundo que viu ao menos um filme do catalão radicado no Brasil.

Furto o assassinato moral para empregá-lo no filme póstumo de Salvá, Na Carne e na Alma, que estreia na sexta-feira (2/3) no Cine Olido em São Paulo, em conjunto com uma necessária mostra do cinema de Salvá, morto em outubro de 2011. Serão exibidos entre 2 e 8 de março sete filmes do realizador [saiba mais aqui]. É a mais interessante estreia desta semana ao lado de Drive.

Na Carne e na Alma é uma história de amor de um conquistador (Karan Machado) que conhece o inferno da paixão ao se enamorar da inconstante, sedutora e blasé Mariana (Raquel Maia). Ele morador de Niterói, mas estudante de uma faculdade de classe média alta na zona sul do Rio de Janeiro (no que me parece uma referência velada à PUC). Ela também frequentadora da mesma instituição, mas vinda de uma família endinheirada. Rodrigo chama Mariana de patricinha. Ela retruca e diz que ele tem mau gosto.

Continue lendo a crítica de Na Carne e na Alma na Revista Interlúdio.


quinta-feira, 1 de março de 2012

O comunicado da Sky e a confusão sobre liberdade


Nas mídias sociais e na blogosfera voltou a esquentar um necessário debate em torno da difusão do produto audiovisual brasileiro na televisão. As manifestações se intensificaram após o comunicado da Sky que justifica porque é contra à lei que assegura a participação de mais produtos audiovisuais brasileiros independentes na grade das televisões por assinatura – a Lei 12.485/11, sob consulta pública na Ancine, desdobramento do famigerado PL 29.

É preciso colocar logo de cara: a Sky é uma empresa que, como qualquer outra, coloca o lucro em primeiro lugar. Logo, é um lugar de mentirinha este lugar de defensores da liberdade e do interesse comum em que ela se coloca com o comunicado publicado semana passada [leia aqui]. É a defensora da liberdade empresarial, que de forma alguma é automaticamente igual à liberdade do cidadão.

O confronto real está omitido no comunicado da Sky: trata-se mesmo é da proteção do lucro de um negócio em franca ascensão contra o interesse comum em ampliar justamente a liberdade de escolha do cidadão e nas possibilidades do que ver na televisão. É justamente o que defende o manifesto em repúdio à medida da Sky [leia aqui].

Grosso modo, o projeto em discussão estabelece que, por semana e em horário nobre (19h às 24h), seja exibido 3h30 de conteúdo nacional – ou seja, 30 minutos por dia. Isso vale para canais de filmes e variedades.

Como lembra matéria do IDG Now, essa porcentagem é irrisória se comparada com outros países. Citando estudo da Unesco, “60% da programação no Canadá deve ser de origem canadense, enquanto que na África do Sul, o índice cai para 35%. Na União Europeia, pelo menos 50% do tempo precisa ser reservado a conteúdo com 'autores, trabalhadores e produtores residentes nos Estados-membros'”.



O comunicado da Sky parte da falaciosa suposição de que hoje o que reina na TV paga reina a liberdade de escolha. Basta espiar a grade de programação e no modelo de negócio tanto dela quanto de outras operadoras como TVA e NET somos reféns de pacotes que condicionam a adesão de certos canais à assinatura de pacotes mais caros. Exemplo? O Canal Brasil.

O texto da empresa diz também que não há interesse na produção independente brasileira. “Além disto, nestes 15 anos de nossa trajetória, jamais recebemos qualquer demanda dos assinantes no sentido de querer ver mais filmes brasileiros independentes na TV. Em um negócio como o nosso, o relacionamento com o cliente, o preço e a qualidade do conteúdo são pilares que definem o sucesso e o aumento da penetração da TV por Assinatura no Brasil”.

Primeiro: o discurso de sempre que recorre ao suposto desinteresse do público. “Menos Faustão na TV? Pra quê, o povo gosta” ou “lançar aquele filme nos cinemas? Pra quê, o povo quer é pão e circo”. Quer-se então manter o ciclo vicioso: não se programa porque o povo não gosta; e como o povo não gosta, não se programa. A resistência a qualquer mudança sempre recorre ao argumento falacioso do “o povo não quer”.

Segundo: esse pilar que a Sky cita está bastante capenga. Deixar cliente esperando na linha não é bom relacionamento; assumir que o preço praticado no Brasil é bom é simplesmente ignorar a média de outros países; afirmar que a qualidade do conteúdo que hoje se tem é satisfatório... aí já é piada (e praticamente chamar seu interlocutor de burro).

A colocação de Newton Cannito, roteirista de Bróder, é esclarecedora. “Não podemos dar a uma corporação privada o título de defensora da liberdade de escolha do cidadão. Liberdade empresarial não é, necessariamente, liberdade cidadã. (…) A SKY não pode se colocar como defensora do interesse público. E tratar os realizadores como se estivéssemos presos a interesses corporativos. Não é verdade. Temos que ter claro que o principal objetivo da lei não é dar empregos para cineastas. Nisso a gente se vira. O principal objetivo da lei 12.485/11 é o cidadão, não a classe audiovisual. Ela serve principalmente para aumentar a diversidade de conteúdos para o cidadão comum. Queremos dar mais LIBERDADE DE ESCOLHA para o cidadão”. [leia a íntegra do texto aqui].



Na campanha em vídeo, a Sky adota o discurso do medo, presente especialmente na fala do jogador Giba. No conteúdo textual, apela para a divisão do Bem (a empresa) e o Mal (a Ancine) autoritária. Não é preciso ir muito longe para lembrar que quando o discurso do medo se aliou à divisão dos moços contra os vilões, Bush levou os EUA ao desastre no Iraque.

Como resposta ao comunicado da Sky, está circulando pela internet um manifesto em repúdio às posições da empresa e seu discurso que pouco esclarece o debate [link aqui].

É necessário sim que a sociedade civil entre no debate, mas não pela porta de entrada da liberdade empresarial, mas na do cidadão e a do bem comum.

*As fotos que ilustram este post são dos filmes Um Sonho de Liberdade, Um Estranho no Ninho e Cry, Beloved Country.