sexta-feira, 24 de maio de 2013
Nenhum vietnamita jamais me chamou de toró*
Um pouco depois das aspirações integracionistas da NAACP ou os filmes-veículo de Sidney Poitier. Um pouco antes do boom do blaxploitation, dos heróis desavergonhados e sedutores. Num período de transição do cinema americano – 1966 é um ano chave no desespero dos estúdios em trazer o público de volta às salas de cinema – existe, silenciosa, uma produção documental produzida pelo viés dos negros.
A conjuntura, lembremos, é de mudança do tom. Se no começo da década predomina o discurso de Martin Luther King pela não-violência, em favor das marchas, dos sit-in, de se integrar às porções da sociedade majoritariamente brancas, no crepúsculo dos anos 1960 intensifica-se a ideia da autodefesa (pela violência, se necessário), do orgulho, da ultra-expansão da negritude, do alargamento de uma comunidade de iguais.
O que, grosso modo, chamamos de Black Power.
É preciso, pois, tirar da escuridão alguns desses documentários. A começar por No Vietnamese Ever Called Me Nigger (1968). Filme de estrutura bastante simples. De um lado, entrevista com três veteranos da Guerra do Vietnã – todos negros –, problematizando a óbvia impossibilidade de defender, em território invadido, uma nação que lhe nega a cidadania. Do outro, uma passeata anti-guerra no Harlem, acompanhada do tradicional povo fala.
Salta nesse documentário o calor da hora, a frase dita sem censura, a postura que pensa na intervenção no presente, não na posteridade – e por isso mesmo torna-se histórica. Na tela um cenário em ebulição. Completos anônimos tornam-se sujeitos. Um lunático defende, ao lado da passeata, uma supremacia branca; duas mães discutem como a guerra lhes furtou os filhos; uma senhora esbraveja contra o governo, que nada lhe dá, mas tudo lhe exige.
A câmera nem sempre sabe o que filmar. Essa “imperfeição” dá também vida a No Vietnamese Ever Called Me Nigger: invade-nos como correnteza a sensação de que um presente vivo, fulmegante norteia o sentido das imagens no documentário.
Outro documentário que não merece permanecer alheio ao conhecimento dos cinéfilos, pesquisadores e público em geral é Huey (1968), também conhecido como Black Panthers. Dirigido por Agnès Varda, o filme sobrevive como um imenso documento de uma mudança de pensamento: da postura de pesar à identidade coletiva fincada no orgulho da própria imagem.
Uma abordagem direta, in your face, de uma realidade, editada em duas frentes. De um lado, protestos para a liberação de Huey P. Newton, um dos líderes do Partido dos Panteras Negras para Autodefesa. Do outro, a convenção do partido, realizada no aniversário de Huey, repleta de discursos apaixonados.
Novamente, a força do presente. Um dos gritos de guerra dos manifestantes diz “No more pigs in our communities – off the pigs”, algo como “Chega dos gambés nas nossas vizinhanças – cai fora bota-preta!”. Agnès, genial, ainda constrói dois lindos momentos cinematográficos: ao posicionar a câmera em várias posições durante a convenção dos panteras, encontrando anônimos dos mais diversos perfis, e quando passeia com a câmera dentro de um carro pela vizinhança, ilustrando as imagens com a fala extra diegética de Stokley Carmichael.
No Vietnamese Ever Called Me Nigger e Huey/Black Panthers, facilmente acessível por torrent [baixe aqui], são dois de dezenas de documentários que capturam o calor do momento. É preciso resgatar, exibir e discutir também The Jungle (1967) [assista aqui] , You Dig It? (1967), de Richard Mason, Portrait of Jason, de Shirley Clarke.
Quem sabe o Amir Labaki, que trouxe o belo The Black Power Mixtape para a abertura do É Tudo Verdade em 2011 não se anima em fazer uma retrospectiva desses documentários independentes de temática negra dos anos 60?
*o título deste post é uma tentativa frustrada de traduzir No Vietnamese Ever Called me Nigger, frase extraída da antológica entrevista de Muhammad Ali, na qual declarou: “I ain't got not quarrel with them Viet Cong. No Viet Cong ever called me nigger” (“Não tenho nenhuma conta a acertar com eles. Nenhum vietnamita jamais me chamou de toró”). Traduzir the N word para o português é bastante complicado.
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