sexta-feira, 28 de junho de 2013

Tabu - Crítica



*originalmente publicado na versão impressa da Revista de Cinema. - edição 114

Pode-se argumentar que o maior chamativo é o amor proibido entre Aurora e Ventura. Porém, há muito mais em jogo em Tabu, ganhador do prêmio Alfred Bauer, dedicado ao filme que abre novas perspectivas de linguagem, no Festival de Berlim em 2012.

Temos, para começar, as nuvens no céu que ganham formas de animais, observadas pelo casal apaixonado com o alumbramento de quem descobre um mundo novo. Além da beleza – como não se comover com os olhos felizes dos personagens? –, tal cena evidencia que Tabu preocupa-se em falar do próprio cinema e situa o amor de Aurora e Ventura num tempo específico.

O tempo do olhar virgem do espectador, disposto a acreditar numa imagem encantada e reveladora, que guardava um mistério – lembremos da afirmação de Godard na abertura de História(s) do Cinema – Todas as Histórias: “Não vá mostrar todas as coisas, guarde uma margem para o indefinido”.

A imagem cinematográfica em Tabu apela para um tempo em que um cidadão não era solapado por cinco, sete telas num vagão de metrô. Tempo em que o olho podia descansar, vagar até encontrar o que realmente merecia ser olhado. Hoje, a sensação é que olhamos por automatismo, não por opção. Olhamos porque está lá, não porque queremos olhar.



Estar alerta a essa nuance na qual o filme de Miguel Gomes investe é confirmar que, a despeito de ser rodado em preto e branco, num formato de tela que remete aos anos 1940 (janela 1.37:1), de ter os diálogos de sua segunda parte silenciados, cobertos por uma estupenda narração em off, Tabu é um filme contemporâneo, sobre o status da imagem no presente.

O que, automaticamente, já o coloca um passo a frente como gesto político quando comparado com O Artista. Se Michel Hazanavicius olha com lentes encantadas para um passado adornado, emulando a possibilidade de um cinema antigo no mundo contemporâneo, Tabu, em todos os seus gestos de “parecer” antigo, não quer prestar homenagem ao cinema, mas inserir-se num tecido histórico. Consciente do passado, Gomes pensa o presente.

Essa é uma das portas que Tabu deixa aberta para refletir sobre a imagem no mundo contemporâneo – tal como fazemos com o seguimento da videocaptura do corpo de Denis Lavant em Holy Motors. Pela mesma porta passa também um questionamento sobre o título do filme, que retoma ao derradeiro longa de Murnau de 1931.



Mas há também uma magia de outra ordem: o amor e a saudade. Apesar do risco da generalização, não dá para escapar: Tabu é uma das mais lindas histórias de amor do cinema contemporâneo. E o que a torna ainda mais tocante é seu caráter inesperado: só o mais otimista dos espectadores imaginaria que a megera mimada Aurora da primeira parte do filme, intitulada Paraíso Perdido seria, de fato, um ser humano com coração, com aventuras, com vida.

Gomes indica nas rachaduras – uma citação a um crocodilo, um certo tratar com a criada, uma melancolia pelo abandono da filha – que Aurora teve uma vida. Mas quando a segunda parte se descortina, filmada como num sonho, que se torna ainda mais lindo porque granulado em preto e branco, com personagens vivendo a quintessência do clichê hollywoodiano, Aurora deixa de ser a megera e se torna mulher.

Não existe, porém, idealização. Se por um lado está presente a ternura com os personagens, por outro aparece a ironia. Gomes desvela o custo político de se viver no paraíso, ilustrando a relação de dominação, poder e subserviência envolvendo os portugueses e os povos dos territórios invadidos – não à toa o desenrolar do romance “coincide” com o levante pela independência. Pois no rastro de amor há também a crueza do retrato dessa elite débil que tem saudade do mundo “perfeito” – já que às custas do outro.

Filme mais vultoso dentro da belíssima filmografia de Miguel Gomes, Tabu vai do amor à política, da memória ao cinema, do passado ao presente, da alegria à melancolia.

Tabu (Portugal, 118 min., 2012)
Cotação: 5 estrelas
Direção: Miguel Gomes
Distribuição: Espaço Filmes
Estreia: 28 de junho

Textos relacionados:
Entrevista com Miguel Gomes. "Para que fazer cinema comercial?"
Análise: Os curtas e longas anteriores de Miguel Gomes

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Manifestações e Trabalhar Cansa: o novo



Este blog tem andado em silêncio por duas razões. Em parte pelo acúmulo de trabalho, que tem me impedido de escrever mais atentamente sobre alguns assuntos (Esses não faltam: por que gostaram tanto de Faroeste Caboclo, meu Deus?!; rever A Memória que me Contam, de Lúcia Murat, agora sem a correria do Festival de Brasília; o filme novo do Shyamalan, Depois da Terra).

Em parte porque – o que se segue é óbvio, mas vai que você andou por Marte nos últimos dias – a cidade de São Paulo está fervendo. A semana passada foi especialmente complicada pela repressão absurda da polícia e a prisão arbitrária do meu amigo Pedro (o jornalista Pedro Ribeiro Nogueira).

Reunido com amigos para assistir o épico jogo 6 entre Miami Heat e San Antonio Spurs na NBA, falávamos de basquete, por supuesto, mas também das duas últimas manifestações. Do temor que uma bandeira específica – revogar o aumento da passagem do transporte público – se tornasse um guarda-chuva que, no fim das contas, acabasse abrigando a turma daquela bobagem monumental chamada Cansei. Imagino que neste momento, qualquer pessoa de bom senso esteja tentando entender o que está acontecendo porque a turma do Cansei realmente colou achando que a onda é a mesma para surfar.

Por que os veículos tradicionais que antes pediam uma ação firme da PM (editoriais da Folha e do Estadão) agora diferenciam manifestantes, ativistas e vândalos? Por que a capa de Veja coloca na mesma manchete tarifa do transporte, corrupção e criminalidade? Por que tem gente cantando hino nas manifestações?! Por que surgiu uma petição pelo impeachment da Dilma?! Por que muita gente no Facebook se coloca como se estivesse num Fla-Flu?

Enfim, questões. Basicamente, é isso que temos, aqueles com menos pressa em fazer comentários sucintos e definitivos sobre o que se passa. Ora a clareza (perceber que tem gente que não está acostumada a manifestações), ora mais dúvida (como assim acham que dá para resumir tudo num “O Brasil acordou”?).

Essa dúvida com o novo – veja bem, o novo não é a manifestação ou a politização, porque afirmar isso é embarcar no “Brasil acordou” e desconsiderar a pauta de movimentos sociais acordados há bastante tempo – me lembra as bobagens que já se disse, e continua dizendo, sobre o cinema, sobre um filme que demanda uma codificação que está além do repertório, do vocabulário e da vontade do espectador.

Tipo os narizes torcidos para Holy Motors. É obrigatório gostar do filme do Carax? Evidente que não. Mas falar “que não é cinema”, “que não faz sentido” é demonstração de preguiça, Pedro Bó. Ou falar que não gostou de Trabalhar Cansa “porque as atuações são artificiais demais” é cegueira apressada de quem só aceita o registro naturalista, de quem só está disposto a enquadrar o filme na sua própria cartilha do Isso Pode, Aquilo Não.

É o mesmo que a NAACP fez com o Blaxploitation. Filmes como Sweet Sweetback Baaaadasss Song ou Shaft eram novos e com posicionamento político que não correspondiam às aspirações integracionistas do negro bem comportado, o Sidney Poitier de Advinhe Quem Vem Pra Jantar?.

Ou ao preconceito com a Nouvelle Vague ou com um filme como Acossado, que detratores acusam de embaralhar o começo, meio e fim.

Ou seja, o novo é mais complexo do que chavões dão conta. Não dá para abarcar as últimas semanas com posts apressados de Facebook, nem com 140 caracteres de Twitter, nem com “o Brasil acordou” Assim como não dá para enquadrar um filme, uma tendência, um movimento que foge do repertório tradicional com “isso não é cinema”, “isso é artificial”.

Precisamos, ora pois, parar e pensar antes de falar desenfreadamente. Em vez de reclamarmos “do que não faz sentido em Trabalhar Cansa”, que tal pensarmos sobre que raios é aquela mancha estranha na parede que resiste em desaparecer?




Em tempo, alguns links para pensarmos:
Leonardo Sakamoto sobre a mistura dos coxinhas, anauês e afins
Débora Lessa e Camila Petroni no Brasil de Fato sobre o perigo do hino
Antonio Prata na Folha sobre não estarmos entendendo nada