sexta-feira, 29 de novembro de 2013
Mantenha o proceder
Uma pena que Mataram meu Irmão tenha voado dos cinemas – na verdade, passou durante uma semana em sessão única às 17h no CineSesc. Pois num momento em que o que chega aos cinemas é uma quantidade assustadora de filmes que somem na primeira ida ao banheiro, Mataram meu irmão tem peso.
Peso este que se estabelece já desde o começo. O filme abre com uma extensa conversa de telefônica, mas só enxergamos uma tela preta. Um homem quer saber como visitar o corpo do irmão, cujos restos foram transferidos para uma vala comum. A mulher, do outro lado da linha, responde com os tiques de burocracia comum a qualquer balcão de informação.
Quando surge o primeiro plano de fato (faróis de carros visto em desfoque numa câmera subjetiva, emulando o embaralhamento do horizonte de quem narra o filme – o próprio diretor), o filme já tem peso, seja no sentido da física (força que age sobre um corpo – no caso, o do espectador, que sentirá o filme nas costas) ou como relevância, uma qualidade que justifica ser assistido.
Mataram meu Irmão poderia ser um desastre. Porque é uma história trágica. Porque o realizador, Cristiano Burlan, está imerso no desenrolar dos fatos. Porque foi filmado em períodos distintos. Felizmente, o filme se sustenta. Ainda que se possa apontar senões, as ressalvas não fazem o filme desmoronar. Ele segue firme.
Quem é Rafael, o irmão morto? Responder a essa pergunta orienta o filme. Não de forma a sufoca-lo, obriga-lo a construir um discurso totalizante e definitivo sobre Rafael. Pelo contrário. Entrevistas com família próxima, família distante, família agregada. Somam-se contradições, o que é riquíssimo: um irmão diz que ele quis ser machão, a viúva defende sua honestidade, a tia relembra como ele era carinhoso, o outro irmão diz que o problema foi se meter com um primo doido. Mataram meu Irmão é uma espécie de Rashomon documental.
Nessa apresentação de pontos de vistas distintos surge, com força, uma narrativa do que é viver numa periferia de São Paulo. Ao negar ao espectador a obrigação do “quem-quando-como-onde-por quê”, Mataram meu irmão dá vida, carne e sangue a uma história anônima dessas que povoam diariamente um Cidade Alerta e seus equivalentes. Sensação que se intensifica na maneira que o filme está circunscrito: abre-se com a voz fria do Estado/instituição; fecha-se com as fotos frias do Estado/instituição.
Por um lado é sim possível assumir o desfecho da vida de Rafael como o desfecho de vida de muito jovem de periferia – basta olhá-los para além do recorte de jornal que ganham nuances. Por outro, não seria buscar a generalização de Mataram meu Irmão como retrato da periferia um equívoco que justamente reproduz um olhar totalizante e cego e deixa passar nuances?
Nesse relato sobre quem foi Rafael, só me recordo de uma canção de Sabotage, Zona Sul:
“Na Zona Sul, cotidiano difícil. Mantenha o proceder; quem não conter, tá fudido”.
sábado, 16 de novembro de 2013
Tatuagem - crítica
Partindo do amor entre um trintão dramaturgo/ator/artista/agitador anarco-dionisíaco e um cadete por volta dos 18 anos, Tatuagem reelabora o passado recente do Brasil fazendo uma intervenção nas fibras nervosas da história que estimulam a memória do cinema. Ao reordenar as possibilidades de percepção do passado, Tatuagem se volta para o presente. Tatuagem é, sem dúvidas, um filme político.
Tal reelaboração tem sua grande força na ética do olhar e no deslocamento do eixo de abordagem: Tatuagem dedica-se aos desviantes da expectativa nacional. Ainda que ambientado na ditadura (provavelmente no fim dos anos 1970), não busca sua legitimidade pela rota “Vem vamos embora que esperar não é saber” ou “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”. Tampouco almeja o eixo cinema novista ou o marginal – apesar de dialogar com alguns pontos do segundo.
Tatuagem está à margem. Primeiro pelo posicionamento geográfico. Não estamos nem no Rio, nem em São Paulo, lugares para os quais costumamos dar muito mais atenção ao pensar os rastros de nossa cinematografia. Estamos em Recife. Melhor: na periferia de Recife, num canto, numa esquina, dentro de um bunker de concreto que no filme se chama Chão de Estrelas. Não estamos no teatro engajado, nem no drama de bom gosto, muito menos na esfera do heteronormativo. Estamos, pois, numa manifestação artística de fruição corporal que está se lixando para o cânone.
Mas Tatuagem não quer o gueto – se o quisesse, talvez o rumo do cadete Fininha seria outro. O longa-metragem de ficção de estreia de Hilton Lacerda como diretor quer a luz. Mais do que olhar para a margem, ele dá à margem a mesma atenção que o cânone recebe ao interpretarmos o Brasil, o cinema daqui, o passado que nos define e nos representa.
Continue lendo a crítica de Tatuagem na Revista Interlúdio.
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