
Também não posso falar sobre Leon numa perspectiva pessoal: só o conheço como “homem de cinema”. Conversar mesmo só uma vez, meio en passant, no jantar da crítica na Mostra de 2010, esforço da Margarida Oliveira, a Margô, em reunir a um grupo que geralmente está disperso na correria da Mostra.
Nos trombamos em corredores, intervalos de sessões e rodas de amigos em comum. Ele não sabia quem eu era. Em um momento, porém, atravessei sua vida de maneira cômica: o acidente no debate com Wim Wenders.
Um dos preferidos de Leon, o alemão, que tenho a sensação de ser uma presença constante na Mostra, deu uma entrevista coletiva sobre sua exposição fotográfica. Na plateia, a senhora Teruyo Nogami, assistente de Akira Kurosawa, em São Paulo para lançar À Espera do Tempo – Filmando com Kurosawa.

Acaba o debate, “obrigado” com sotaque alemão, aplausos etc. Atrás de mim, a senhora Nogami tropeça e, num reflexo espalhafatoso, agarro-a e deixo seu corpo desabar sobre o meu. “Arigatô, arigatô”, diz ela. Sua tradutora agradece. Renata de Almeida, codiretora da Mostra, também agradece. Leon agradece. Salvei a memória viva do cinema japonês, brinco. Rimos e nos vamos, a correria nos chama.
Esta foi a única vez que nos “relacionamos” pessoalmente. De resto, sempre foi uma relação unilateral entre eu e sua cria, a Mostra. É sobre esta que pretendo falar: o compartilhamento do cinema e, agora, a orfandade da cinefilia.
Há cinco edições
Cinéfilo tardio que tateou por cinematografias às escuras, fui entender o que significava a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo aos 20 anos, três décadas após o surgimento da Mostra. Foi a edição do pôster vermelho.
Cego a uma cinefilia mais aprumada, perdi, porém, a retrospectiva da obra de Joaquim Pedro e a retrospectiva do cinema político italiano, período que só viria a descobrir três anos depois por meio da paixão de Carlos Reichenbach.
Veio a edição de 2007, a do pôster

Foi o ano também de Irina Palm, filme médio que adorei à época: meu primeiro debate sério. Logo após a sessão, ainda inebriado pela trama, um colega destruiu o filme. Fiquei atônito. Marcou-me também Vocês, os Vivos, de Roy Anderson, sueco que abriu os olhos para outro tipo de cinema. Foi neste ano também que a Mostra trouxe um dos autores que hoje me define e no qual me projeto, mas que descobri recentemente por meio do amigo e crítico Sergio Alpendre: o francês Jacques Nolot e sua obra-prima Avant que J’oublie.
Já ia me esquecendo: 2007 foi o ano também em que Claude Lelouch escreveu mais um capítulo da sua cruzada contra a Nouvelle Vague, à qual acusa (especialmente aos críticos que a tomam como farol) de ter ofuscado seu cinema de amor. Vê-lo falar de cinema na FAAP foi bem mais interessante que seu filme daquele ano, Crimes de Autor.
Assayas e Jia Zhang-ke
Em 2008, a edição do pôster de Tomie Othake, já escrevia mais assiduamente sobre cinema e tinha um discernimento mínimo. Deu para aproveitar muito mais a Mostra. Foi o ano que descobri Olivier Assayas, com Horas de Verão, e Jia Zhang-ke, com Em Busca da Vida.

Naquela mesma edição, a Mostra teve a coragem de trazer a íntegra de Berlin Alexanderplatz, programou uma linda projeção de O Poderoso Chefão e ousou ao colocar num patamar superestimado a obra de Pablo Trapero. Ano também em que Hugh Hudson mostrou um novo corte de Revolução Revisitada e reclamou do ostracismo.
Assistimos também a um cinema português vivo, representado por Aquele Querido Mês de Agosto. Reclamamos, todavia, da má qualidade das projeções em digital, tema que se tornou presente em todas as mostras desde então.
De Haneke a Kiarostami
Nos últimos dois anos, a Mostra continuou na mesma toada: superlotada, projeções de qualidade duvidosa e filmes apaixonantes. Em 2009, alguns realizadores tradicionais decepcionaram, como Almodóvar (Abraços Partidos) e Ang Lee (Aconteceu em Woodstock). Do outro, os velhinhos deram conta do recado: Resnais (Ervas Daninhas), Wajda (Alma Doce) e Manoel de Oliveira (Singularidades de uma Rapariga Loura).
Foi o ano em que vi bons filmes que imaginei reencontrar nos meses seguintes no circuito comercial, mas nunca chegaram a ser lançados. Casos de Lebanon e Fish Tank. Ano também em que descobri o valor de

Em 2010, quase tive a honra de ver Manoel de Oliveira de perto. Convidado para a abertura da Mostra, ficou doente e mandou apenas uma mensagem em vídeo, bem humorada. Em compensação, vi uma obra-prima que defendo como tal com unhas e dentes: Cópia Fiel, apaixonante filme de Kiarostami. Porém, o evento mais marcante foi a exibição da inédita cópia na íntegra de Metrópolis: milhares de pessoas esparramadas no Gramado do Ibirapuera para ver um filme mudo de 1927! Eu estava lá e foi a Mostra que me proporcionou esta experiência.
Fechando o diário
Os cânones do jornalismo asséptico condenariam este texto de memórias construído em primeira pessoa. Às batatas, que se vão! Como cinéfilo, não há como falar de Leon Cakoff sem passar automaticamente à sua cria, a Mostra. E não dá para conversar sobre ela sem passar por memórias.
Cakoff foi um daqueles tipos que se salvaram por causa do cinema, que se enxergou e projetou em personagens, cenas e cineastas. Assim somos muito de nós, os cinéfilos, que passam a se dedicar à reflexão crítica e à troca de ideias no texto.
Falar dele – em que pese, advertem os amigos ou colaboradores, seu ar tratorista e autoritário nos bastidores – é recuperar as memórias de uma formação: de cinéfilo e de ser humano.
Esta é a memória que vou guardar.
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