As Neves do Kilimanjaro é um baita case de como fazer um filme sobre o mundo do trabalho ser assistido por senhoras conservadoras em sessões de início de tarde embaladas por uma canção idílica.
Perspicácia é o que não falta a Robert Guédiguian, diretor e corroteirista deste filme francês que estreou no Brasil na sexta-feira passada (6/4). Sobra-lhe inteligência para trazer aquilo que Theo Angelopoulos chama de a Grande História para o cotidiano, para a vida do homem médio, estabelecendo assim o diálogo (empático ou antipático) entre personagem/espectador.
Tem-se neste filme de crise a França contemporânea em discussão, com ecos comuns a outros países europeus. Guédiguian é muito esperto na abordagem e vai num registro de cinema universal (filme de amor) para propor uma discussão político-econômica. É a mesma inteligência que Scorsese tem com A Invenção de Hugo Cabret que, como bem definiu o crítico e cineasta Kleber Mendonça Filho, “é um filme sobre preservação de arquivos” travestido de aventura juvenil para toda a família.
As Neves do Kilimanjaro (não parece título de filme fofinho e idílico?) é o homem francês cinquentão colocado num divã coletivo: de que serviu a nossa atuação política se hoje o arroxo neoliberal não estende o Estado de Bem-Estar Social para as jovens gerações que entram no mercado de trabalho?
Há, então, um abismo de gerações. De um lado, os cinquentões que fizeram o arco militância-pequena burguesia consciente socialmente; de outro, os que estão perto dos trinta e descobrem um mundo do trabalho bem menos amigável e questionam se foram de fato conquistas as que seus pais fizeram.
É necessário um traumático assalto para que esse abismo venha à tona, a calmaria se dissipe e apareça a questão: é vencedora ou derrotada a geração representada pelo personagem coroa de Jean-Pierre Darroussin? Qual é a melhor forma de ler a sequência inicial, em que frases de luta (“unidos venceremos”) estão inseridas num cenário de derrota? Qual derrota é maior, dos velhos ou dos jovens?
Traduzindo, discussão político-econômica, divã de gerações, filme de crise. Mas Guédiguian faz isso trazendo para o núcleo elementar, a família. Fala de amor, amizade e culpa no meio do caminho. Com isso, vai tocando uma grande discussão sobre como a geração das greves da França se veem. O tal roubo que acontece no filme é o combustível a impulsionar a reflexão.
As Neves do Kilimanjaro é um filme sobre o mundo do trabalho travestido de filme de amor e relações.
E a essência de tudo isso está na canção abaixo, que dá nome ao filme. É um típico exemplar de cancioneiro francês. Um comentário irônico sobre esse tal lugar que vai te envolver como uma manta branca onde você poderá dormir logo. Seria a França ainda esse lugar? Melhor: ainda existe esse lugar?
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