Jards Macalé no documentário Jards, de Eryk Rocha |
Após da mesa de debate sobre o documentário Jards, na qual participei, como crítico convidado, ao lado de Joaquim Castro (montador), Francisco Cesar Filho (mediador), Eryk Rocha (diretor) e Jards Macalé (protagonista) na 16ª Mostra de Tiradentes, algumas pessoas me procuraram pedindo o texto que li na apresentação do debate.
Reproduzo abaixo minha fala, com pequenas alterações, tentando preservar o espírito da oralidade. Não se trata de um texto articulado como crítica de cinema, apenas uma das diversas abordagens possíveis a Jards, concentrando-a num aspecto bastante particular.
Acredito que Jards seja um filme musical para se ouvir com o olho. Uma frase dessas pode parecer clichê porque obviamente um filme se vê com o olho, mas não é. A produção recente de documentários musicais – ainda que eu não ache Jards um documentário musical, mas uma poesia cine-musical – tem se baseado basicamente em: imagens de arquivo; entrevistas; produção musical do documentado.
Entram nessa linha filmes bons e ruins: Tropicália, Uma Noite em 67, os dois filmes sobre Tom Zé, Loki – Arnaldo Batista, Raul etc.
São filmes de natureza distinta, de escopo mais amplo, enquanto Jards tem um recorte de tempo e espaço mais delimitado – a gravação de um álbum. Mas ainda acho interessante ressaltar essa ideia de que é um filme musical para se ouvir com o olho.
O olho do espectador em Jards é tão importante quanto o ouvido. Em vários momentos, fiquei tentando em fechar os olhos e deixar a música entrar pelo ouvido – porque é assim que eu escuto música em casa, janelas fechadas, na escuridão –, mas relutei porque, conforme o filme foi se desenvolvendo, percebi que meu olho precisava participar dessa cena de apreciação.
Tanto que há uma profusão, uma quantidade grande de planos no olho, quando um filme sobre música ou sobre um fazedor de música costuma se concentrar no ouvido. A gente teve outro filme bom aqui em Tiradentes, Matéria de Composição, que constrói/desconstrói o processo de composição de três músicos eruditos, com muitos planos que tomam o ouvido do personagem como seu porto seguro, seja para começar um plano ou para encerrá-lo. Em Jards, me parece que o porto seguro do plano, quando se filma o Macao cantando, é o olho.
O olho do Jards, o olho da câmera, o olho do espectador. Por ser um filme de intervalos – gravação e momentos fora do estúdio ou do passado –, me parece haver uma preocupação em estimular o olho não apenas quando a música acontece, mas principalmente quando ela não acontece.
E a minha leitura desse estímulo visual num filme musical está ligada à possibilidade de a imagem não só ilustrar uma música, uma nota, um acorde, mas dela oferecer possibilidades de percepção da música. Essas imagens do intervalo das gravações, assim como a maneira que a câmera registra as gravações, servem não para se tornar a síntese de algo, mas para levar o espectador a um estágio tal de percepção dessa ou daquela música.
Um dos momenos que melhor ilustra isso é o mar em preto e branco que balança suavemente para lá e para cá, embalando o nosso olhar, antecedendo uma canção que é justamente de embalar, Boi da Cara Preta.
O que o filme de Eryk Rocha mostra em muitos momentos é que é possível traduzir com a imagem um estado de espírito que a música causa. Por isso que é um filme para se ouvir com o olho.
Abrindo um parênteses dentro da carreira do próprio Eryk: num filme com imagens apuradas e belas como Transeunte, seu longa anterior, tanto o acesso do personagem ao mundo quanto do espectador ao filme era pelo ouvido, pelos sons que ele, Francisco, ouvia de uma cidade que lhe parecia distante. Agora, num filme em que o som automaticamente chamaria a atenção Eryk propõe um acesso pelo olho.
Nesse acesso à música pelo olho, há um momento de rara felicidade: a primeira canção executada, Só Morto, num arranjo bastante intenso, “descontrolado”, que propõe perder-se, deixar-se levar pela ultrassensibilidade. A imagem deixa a luz estourar, a câmera cola no rosto: em vez de domar a selvageria, ela deixa correr solta. É num momento assim que a gente entende como o filme Jards dá conta pela imagem de um texto musical
Abrindo outro parênteses: o professor Roberto Bozetti classifica a produção pós-tropicalista, que é o contexto em que o Macalé explode para o Brasil, após a maluca apresentação de Gotham City em 1969, como “canção de esgar” – ou seja, canções de sentido esgarçado, de aparente incoerência, de desconforto, de grito, que se opõe à ideia de “canção de confronto”, que caracteriza a tradicional MPB de meados dos anos 60:
(…) Como se o que ali se dizia só pudesse ser dito e só devesse ser percebido em frangalhos [1]
Ao menos para mim, que ouvi e ouço a produção musical do Macao em momentos distintos, foi a primeira vez que vi uma imagem capaz de dar conta, e mais, de me fazer ver e ouvir além do que eu já tinha feito sozinho, em casa, antes de assistir a Jards.
Para encerrar, acredito que tal apreço que o filme Jards tem pela imagem, apesar de ser um filme protagonizado pela música e por um músico, cobre um buraco que pouca gente se dedicou a entender: a influência e o diálogo das artes plásticas na produção de Macalé, um músico que não pode ser visto apenas como um fazedor de música.
O documentário de Eryk Rocha não encerra isso, mas inaugura uma possibilidade de percepção e entendimento da música de Macao usando um vocabulário de estímulo do olho, não do ouvido.
[1]. Roberto Bozzetti, Uma Tipologia da Canção no Imediato Pós-tropicalismo. Revista Letras nº34. Universidade de Santa Maria.
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