Em Gramado, ano passado, tinha um jornalista uruguaio no grupo da imprensa estrangeira que cobria o festival de cinema. Na ocasião, Marcus Mello, crítico da gaúcha Teorema, comentou comigo sobre um certo culto da crítica uruguaia em torno dos pequenos dramas do inglês David Lean.
Pronto, vou me mudar para o Uruguai, porque sou um apaixonado por David Lean. É até difícil reconhecer os erros quando se louva a um cineasta, mesmo quando ele faz um filme médio como Grandes Expectativas (1946).
Mas existe alguma coisa no cinema dele, seja nos dramas pré-Hollywood, seja nos projetos milionários filmados em Panavision, que me encanta. Talvez o uso preciso, dentro de sua narrativa clássica, das metáforas e símbolos. Talvez seu trabalho como montador, que denota nos planos de seus longas uma precisão do que filmar (será viagem minha?).
O fato é que David Lean é uma descoberta relativamente recente para mim. Liderando a minha lista de preferidos está Desencanto (1945), um pequeno filme grande. Como comove acompanhar a castração à qual Laura (Celia Johnson) se submete para esquecer o acidental (será?) romance com o dr. Alec (Trevor Howard)? Como não se encantar pelo uso do som dos trens para representar a confusão da personagem? Como não se imbuir dos close-up que perfuram a alma de Laura?
Mas este post não é para fazer um balanço da carreira de David Lean, mas quer falar especificamente de Passagem para Índia. Quando o assisti achei que fosse da safra de A Ponte do Rio Kwai, ou seja, meado dos anos 50. Qual minha surpresa quando acabam os créditos e, tcharam, é de 1984! Não só, trata-se do último longa dirigido, montado e adaptado para os cinemas de Lean, que morreria sete anos depois.
Um filme como esse durante os anos 80 parece um óvni. Tem dois aspectos que gostaria de comentar. O primeiro diz respeito a uma abordagem psicológica e outro é sexual.
Passagem para Índia, um multindicado ao Oscar que foi derrotado frente a Amadeus e Um Lugar no Coração, é ambientado nos anos 20, quando a Inglaterra ainda era a metrópole, enquanto os indianos vivam subjugados como colônia. Nesse cenário de clubes restritos aos brancos e ricos, Adela (Judy Davis) vai para a Índia conhecer onde seu futuro marido trabalho como juiz.
Perdida, ela acha um cúmulo a discriminação e, ao lado da futura sogra senhora Moore (Peggy Aschcroft), quebra barreiras e inicia amizade com o médico indiano Aziz (Victor Banerjee), a contragosto do noivo Ronny (Nigel Havers).
Muita coisa acontece em 164 minutos de filmes. Uma ponta interessante que Lean deixa aberta no roteiro que adaptou do livro de E.M. Foster é o desejo. Adela fantasia ser possuída por Aziz, mas jamais iria assumir este fato. Então, numa operação de proteção, ela deixa de ser sujeito do desejo e se torna objeto, jogando o suposto interesse nas atitudes de Aziz. Ou seja, na interpretação da moça, é ele quem a deseja. Assim, ela está mais que resguardada para dizer “esse indiano atentou contra mim”.
Insinuação homossexual
O cinema mainstream clássico está abarrotado de exemplos de enredos que insinuam afeto homoerótico – quem não se lembra de Festim Diabólico, de Hitchcock? No filme de Lean, é muito tênue a linha que separa a atmosfera camarada da homossexual entre Aziz e seu protetor branco, Fielding (James Fox).
Numa sequência marcante, Fielding vai ao bangalô do amigo contar que Adela irá à falência se o médico indiano mantiver o pedido de indenização. Aziz mostra-se irredutível. Chega o cortejo que vai saudar sua libertação.
- Você não vem comigo, Fielding?
- Acho que não.
A câmera mantém-se concentrada no rosto de Fielding. Começa a chover (água a representar o choro que não pode ser demonstrado?). A câmera abandona o britânico e vai de encontro a Aziz que, no meio da multidão a festejar, derrama muitas lágrimas sob uma maquiagem carregada.
Sequência que deixa abertas todas as pontas homossexuais que quisermos puxar.
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011
quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011
O Discurso do Rei, um burocrata
Muitos filmes crescem dias depois de serem assistidos. No caso do drama histórico de Tom Hopper, tem acontecido o oposto. A cada dia que passa, o filme tem caído mais e mais. Resumindo o incômodo que ele traz: O Discurso do Rei é como fazer sexo “papai e mamãe” por dois anos interruptos. Sem gosto, novidade, aventura ou surpresa.
Dá para falar que é ruim? Claro que não, já que é tecnicamente irrepreensível, certinho. Mas todos os elementos do filme são irritantemente quadrados e previsíveis. Especialmente direção e roteiro, que deixam claro que se trata de uma história de superação com final feliz.
Apontar a caretice desse filme é uma birra com a narrativa cinematográfica clássica? Não. Pensemos no maior expoente desse estilo de cinema vivo, Clint Eastwood – do qual, infelizmente, ainda não vi Além da Vida. Mas pego dois filmes bons da safra recente, Gran Torino e A Troca.
Nestes filmes, os enquadramentos de Clint são soberbos, enquanto os de Tom Hooper são de um burocrata. Os roteiros com os quais o veteraníssimo trabalha permite idas e vindas dos personagens, subidas e descidas, felicidades e tristezas. No caso do trabalho de David Seidler, o espaço para escorregões da vida são mínimos: George VI, o gago, conhece Lionel Longue, o professor, e inicia uma jornada sempre para cima, tendo como cume a superação do protagonista.
Pensemos também na abordagem psicológica dos porquês da gagueira do futuro rei George VI. O Discurso do Rei entrega ao espectador, sem pedir muito esforço dele, as razões: criação opressora, o medo de se tornar a sombra do irmão mais velho e de admitir seu desejo de assumir o trono. É só juntar “lé” com “cré” que fica bem simples de entender a composição do gago mais famoso da Inglaterra.
Quando quer entrar na mente de um personagem e em seu espírito de superação, Clint não tem medinho de causar dor – por exemplo, Sobre Meninos e Lobos ou Menina de Ouro.
Resumindo, acho um equívoco subentender que quem aponta em O Discurso do Rei uma caretice exagerada é movido por uma premissa anti-narrativa clássica. Está aí Clint Eastwood, por exemplo, para me socorrer.
Em tempo: uma crítica mais elaborada sobre o filme de Tom Hooper, que deve,a propósito, papar o Oscar deste ano, foi escrita para o Cineclick [clique aqui].
Em tempo 2: Para o The New York Times, Manohla Dargis abre assim sua crítica: “Filmes britânicos que chegam às telas americanas nos dias de hoje geralmente se encaixam em dois estilos: a vida é miserável e a vida é doce (pegando emprestado um título do diretor Mike Leigh, que costuma oscilar entre ambos). Dada a qualidade dos protagonistas e o alto perfil comercial (ding-dong, é o Oscar chamando), não é surpresa que O Discurso do Rei, uma história camarada sobre dois personagens charmosos e agressivamente opostos – Colin Firth como o gago que se tornaria rei e Geoffrey Rush como o terapeuta do discurso –, vem com um montão de colheres de açúcar”.
Dá para falar que é ruim? Claro que não, já que é tecnicamente irrepreensível, certinho. Mas todos os elementos do filme são irritantemente quadrados e previsíveis. Especialmente direção e roteiro, que deixam claro que se trata de uma história de superação com final feliz.
Apontar a caretice desse filme é uma birra com a narrativa cinematográfica clássica? Não. Pensemos no maior expoente desse estilo de cinema vivo, Clint Eastwood – do qual, infelizmente, ainda não vi Além da Vida. Mas pego dois filmes bons da safra recente, Gran Torino e A Troca.
Nestes filmes, os enquadramentos de Clint são soberbos, enquanto os de Tom Hooper são de um burocrata. Os roteiros com os quais o veteraníssimo trabalha permite idas e vindas dos personagens, subidas e descidas, felicidades e tristezas. No caso do trabalho de David Seidler, o espaço para escorregões da vida são mínimos: George VI, o gago, conhece Lionel Longue, o professor, e inicia uma jornada sempre para cima, tendo como cume a superação do protagonista.
Pensemos também na abordagem psicológica dos porquês da gagueira do futuro rei George VI. O Discurso do Rei entrega ao espectador, sem pedir muito esforço dele, as razões: criação opressora, o medo de se tornar a sombra do irmão mais velho e de admitir seu desejo de assumir o trono. É só juntar “lé” com “cré” que fica bem simples de entender a composição do gago mais famoso da Inglaterra.
Quando quer entrar na mente de um personagem e em seu espírito de superação, Clint não tem medinho de causar dor – por exemplo, Sobre Meninos e Lobos ou Menina de Ouro.
Resumindo, acho um equívoco subentender que quem aponta em O Discurso do Rei uma caretice exagerada é movido por uma premissa anti-narrativa clássica. Está aí Clint Eastwood, por exemplo, para me socorrer.
Em tempo: uma crítica mais elaborada sobre o filme de Tom Hooper, que deve,a propósito, papar o Oscar deste ano, foi escrita para o Cineclick [clique aqui].
Em tempo 2: Para o The New York Times, Manohla Dargis abre assim sua crítica: “Filmes britânicos que chegam às telas americanas nos dias de hoje geralmente se encaixam em dois estilos: a vida é miserável e a vida é doce (pegando emprestado um título do diretor Mike Leigh, que costuma oscilar entre ambos). Dada a qualidade dos protagonistas e o alto perfil comercial (ding-dong, é o Oscar chamando), não é surpresa que O Discurso do Rei, uma história camarada sobre dois personagens charmosos e agressivamente opostos – Colin Firth como o gago que se tornaria rei e Geoffrey Rush como o terapeuta do discurso –, vem com um montão de colheres de açúcar”.
domingo, 6 de fevereiro de 2011
Luc Moullet, o provocador
“Eu não gosto de westerns. É por isso que gosto de Rio Bravo”. O autor da frase é o crítico e cineasta Luc Moullet, que eu não conhecia (nem a ele, nem a frase) até ser devidamente apresentado pelo meu amigo Sérgio Alpendre.
Felizmente, existe a mostra “Luc Moullet – O Cinema de Contrabando”, acontecendo até dia 20 no CCBB de São Paulo, organizada por Xiquinho, Rafael Sampaio, Maria Clara Escobar, Remier Lion e Anne Fryszman. Retrospectiva integral de uma pessoa provocadora.
Provocações fora do parâmetro, do esperado. Diz-se que Moullet é um dos filhos da Nouvelle Vague. Porém, realiza filmes que funcionam como resposta a quem aprisiona os cineastas de hoje aos cânones do passado. Diz-se também que Godard está na lista de fãs do cineasta, mas aí Moullet faz filmes que ironizam ou contestam o peso de Godard para o cinema de hoje.
O fato é que Moullet é um provocador, não um polemista. Suas piadas e filmes que sinceramente assumem sua precariedade criam um desconforto no espectador. É difícil ser a mesma pessoa depois de assistir a um filme dele.
Por exemplo, em O Prestígio da Morte (2007). Nele, Moullet interpreta um cineasta que bola um super plano para conseguir financiamento para seu próximo filme: forjar a própria morte, por que não? Assim, a televisão que sumariamente o ignora daria visibilidade à sua obra e o colocaria no panteão dos imortais. Os produtores que tantas vezes lhe bateram a porta na cara enalteceriam sua obra. Moullet voltaria depois do golpe, e voilá, show time!
Uma piada muito séria sobre o sistema de produção, o conceito de cineasta irretocável que só interessa como integrante de um passado ao qual acessamos como se estivéssemos abrindo uma gaveta de um museu. Sobre os mitos, as obras-primas, os deuses do cinema. Moullet cutuca aos outros e não se leva a sério jamais: qual é o prestígio trazido pela morte?
Ainda não li os escritos de Luc Moullet como crítico de cinema. Mas, em relação aos seus filmes, após ter assistido a quatro deles, fico com a sensação de que, além da ótima verve cômica, são imprescindíveis para qualquer espectador que queira tirar a bunda de sua confortável cadeira intelectual.
Em tempo: falando em ironizar Godard – cineasta, vejam bem, pela qual tenho apreço –, me lembro de um outro curta divertidíssimo, brasileiro, de Paulo Gregori, o JLG/PG. Não me esqueço de uma sequência com uns dizeres na tela: “Um filme sobre o desprezo do homem que fez um filme sobre o desprezo... GODARD... GOD?”. Aos curiosos, o curta-metragem de Gregori está aí embaixo:
Felizmente, existe a mostra “Luc Moullet – O Cinema de Contrabando”, acontecendo até dia 20 no CCBB de São Paulo, organizada por Xiquinho, Rafael Sampaio, Maria Clara Escobar, Remier Lion e Anne Fryszman. Retrospectiva integral de uma pessoa provocadora.
Provocações fora do parâmetro, do esperado. Diz-se que Moullet é um dos filhos da Nouvelle Vague. Porém, realiza filmes que funcionam como resposta a quem aprisiona os cineastas de hoje aos cânones do passado. Diz-se também que Godard está na lista de fãs do cineasta, mas aí Moullet faz filmes que ironizam ou contestam o peso de Godard para o cinema de hoje.
O fato é que Moullet é um provocador, não um polemista. Suas piadas e filmes que sinceramente assumem sua precariedade criam um desconforto no espectador. É difícil ser a mesma pessoa depois de assistir a um filme dele.
Por exemplo, em O Prestígio da Morte (2007). Nele, Moullet interpreta um cineasta que bola um super plano para conseguir financiamento para seu próximo filme: forjar a própria morte, por que não? Assim, a televisão que sumariamente o ignora daria visibilidade à sua obra e o colocaria no panteão dos imortais. Os produtores que tantas vezes lhe bateram a porta na cara enalteceriam sua obra. Moullet voltaria depois do golpe, e voilá, show time!
Uma piada muito séria sobre o sistema de produção, o conceito de cineasta irretocável que só interessa como integrante de um passado ao qual acessamos como se estivéssemos abrindo uma gaveta de um museu. Sobre os mitos, as obras-primas, os deuses do cinema. Moullet cutuca aos outros e não se leva a sério jamais: qual é o prestígio trazido pela morte?
Ainda não li os escritos de Luc Moullet como crítico de cinema. Mas, em relação aos seus filmes, após ter assistido a quatro deles, fico com a sensação de que, além da ótima verve cômica, são imprescindíveis para qualquer espectador que queira tirar a bunda de sua confortável cadeira intelectual.
Em tempo: falando em ironizar Godard – cineasta, vejam bem, pela qual tenho apreço –, me lembro de um outro curta divertidíssimo, brasileiro, de Paulo Gregori, o JLG/PG. Não me esqueço de uma sequência com uns dizeres na tela: “Um filme sobre o desprezo do homem que fez um filme sobre o desprezo... GODARD... GOD?”. Aos curiosos, o curta-metragem de Gregori está aí embaixo:
terça-feira, 1 de fevereiro de 2011
Nildo Parente se foi
O cinema não foi muito grato com Nildo Parente. Ator com tantos recursos, ficou renegado a filmes menores ou a personagens coadjuvantes. Trabalho constante mesmo só na televisão, onde é mais lembrado pelas novelas Pai Herói, Guerra dos Sexos e Vereda Tropical.
Marcelo Miranda, colega de crítica de Minas Gerais, é certeiro ao dizer que Nildo “era aquele rosto que todo mundo conhecia, mas poucos sabiam dizer seu nome de primeira”. Nildo se foi aos 76 anos, vítima de AVC.
No cinema, participou de uma obra-prima: S. Bernardo, de Leon Hirszman, feito em 1972. Naquela época, Nildo tinha apenas sinais de calvície e ainda conservava a barba que o marcaria nos papeis da televisão. No filme, ele é o contraponto perfeito da dureza, poder e agressividade de Othon Bastos. Um intelectual meio de fachada, meio preguiçoso, que sucumbe ao controle do bruto Paulo Honório.
De cabeça, a última vez que lembro ter visto Nildo Parente num filme foi em Depois de Tudo, curta-metragem de Rafael Saar. Um triste filme sobre um casal com o peso de décadas de opressão nas costas. Ney Matogrosso, gay assumido, interpreta um homossexual enrustido de vida dupla. Nildo vive seu contraponto, disposto a assumir a relação.
Guardo três imagens do filme na cabeça: uma discussão na cozinha, bem na hora de preparar o jantar; o casal assistindo a um filme junto; a dura despedida após a terna noite. Depois de Tudo é o contraponto ficcional do documentário Bailão, um olhar microscópico sobre dois personagens de uma geração que hoje tem entre 60 e 70 anos e enxerga à distância a liberação sexual.
Marcelo Miranda, colega de crítica de Minas Gerais, é certeiro ao dizer que Nildo “era aquele rosto que todo mundo conhecia, mas poucos sabiam dizer seu nome de primeira”. Nildo se foi aos 76 anos, vítima de AVC.
No cinema, participou de uma obra-prima: S. Bernardo, de Leon Hirszman, feito em 1972. Naquela época, Nildo tinha apenas sinais de calvície e ainda conservava a barba que o marcaria nos papeis da televisão. No filme, ele é o contraponto perfeito da dureza, poder e agressividade de Othon Bastos. Um intelectual meio de fachada, meio preguiçoso, que sucumbe ao controle do bruto Paulo Honório.
De cabeça, a última vez que lembro ter visto Nildo Parente num filme foi em Depois de Tudo, curta-metragem de Rafael Saar. Um triste filme sobre um casal com o peso de décadas de opressão nas costas. Ney Matogrosso, gay assumido, interpreta um homossexual enrustido de vida dupla. Nildo vive seu contraponto, disposto a assumir a relação.
Guardo três imagens do filme na cabeça: uma discussão na cozinha, bem na hora de preparar o jantar; o casal assistindo a um filme junto; a dura despedida após a terna noite. Depois de Tudo é o contraponto ficcional do documentário Bailão, um olhar microscópico sobre dois personagens de uma geração que hoje tem entre 60 e 70 anos e enxerga à distância a liberação sexual.
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