quarta-feira, 18 de dezembro de 2013
Um Estranho no lago
Gostaria de me ater mais pausadamente sobre Um Estranho no Lago, o primeiro filme de Alain Guiraudie a estrear formalmente no circuito brasileiro (ainda que seja uma estreia para lá de discreta, em apenas uma sala -- Reserva Cultural -- em São Paulo).
Mas o tempo é escasso, especialmente porque até sexta-feira, 20, ministro o curso Panorama do Cinema Brasileiro no CineSesc da Augusta. Gostaria de comentar com mais vagar o quão existencialista esse filme me parece, a despeito das "pirocas ao vento", como brincou Inácio no derradeiro post de seu blog.
Indico-lhes, pois, dois textos que, penso, dá conta de aspectos distintos do filme de Guiraudie. O primeiro é de Marcelo Miranda para a querida Revista Interlúdio [clique aqui e leia]. O segundo é o de Fábio Andrade para a Cinética [clique aqui e leia].
E, por favor, vá ao cinema assistir Um Estranho no Lago antes que seja chutado de cartaz.
segunda-feira, 9 de dezembro de 2013
Azul é a cor mais quente
Fui assistir ao filme de Kechiche, que já chegou ao Brasil cercado de expectativas. Primeiro problema: aguardei durante as três horas surgir o tal grande filme. Só encontrei um filme sólido, com clareza de interesses, momentos belos e outros bastante questionáveis. Enfim, aos que gostam de cotação: um três estrelas.
Clareza de interesses: Azul é a cor mais quente está todo estruturado na ausência de distanciamento entre a câmera e a personagem, Adèle, a encantadora menina em sua jornada de saída da infância e da adolescência para os primeiros passos na vida adulta. Ao colar a câmera na atriz incessantemente está explícito: teremos de enxergar e sentir o mundo tal como Adèle. Ela é, pois, nossa porta de entrada para o mundo. Não nos é dada muita possibilidade de respiro fora dos poros de Adèle. Na verdade, o ar que respiramos no filme vem sempre repassado de seus pulmões.
Momentos belos: o sexo é de uma beleza absurda em Azul é a cor mais quente. Minha sensação é que até esse filme chegar eu jamais tinha vivido uma representação cinematográfica autêntica do orgasmo feminino. Acho ainda mais curioso que o responsável por isso seja um diretOR, não uma diretORA.
Nessa falta de distância personagem-câmera-espectador, me soam muito bonitas as duas longas sequências em que Emma, se solidificando como pintora, é o centro das atenções (numa festa no jardim e numa vernissage). Adèle, ao mesmo tempo pertencente (porque companheira de Emma) e estrangeira (porque não é artista) à aquele mundo, está perdida. Na primeira, o que lhe resta é perguntar incessantemente “quer mais macarrão?”; na segunda, a atitude mais digna é assumir a derrota.
Fora isso e uma evidente capacidade olhar Adèle (especialmente no capítulo 1, quando ela está descobrindo o que é crescer), só vejo um filme correto e sólido – estão lá as necessárias elipses e o cuidado em escolher os intervalos certos para se recortar e apresentar ao público ou o amálgama da câmera com as personagens.
Há as escolhas questionáveis também: filmar no contraluz é tão arriscado quanto usar violino em trilha sonora, pois a chance de desandar é gigante. E quando Kechiche filma um beijo com a luz do sol estourando entre os lábios das meninas eu já acho um pouco boboca demais. Infantil também é voltar ao parque onde tudo começou e que agora guarda rastros de melancolia; ou terminar com aquele plano para lá de previsível; ou o maniqueísmo fácil dos pais de Emma serem liberais, enquanto os de Adèle são os conservadores.
[Quem leu o texto até agora não encontrou uma vez sequer a palavra “polêmica”. Simples: ela não existe. A maneira que o filme foi circundado e acusado de polêmico ou a prisão ao jornalismo declaratório, que ficou levando a troca de farpas entre diretor e atriz no tom “ele me explorou”-“ela quer tirar vantagem”, só vem a ilustrar o vazio do debate cultural].
Até agora, li duas críticas de Azul é a cor mais quente. Ambas escritas por quem gostou muito do filme. A primeira de Carol Almeida [clique aqui e leia], que faz uma defesa do filme sob o ponto de vista de quem embarcou. A segunda do Inácio Araújo [clique aqui e leia], que defende o filme por sentir que ele responde a uma inquietação que é cara ao crítico: a tendência do cinema contemporâneo se isolar do mundo.
Acho o texto da Carol bonito, leitura complementada na conversa que tivemos. Mas como ela fala de um lugar de quem embarcou, o diálogo vai só até certo ponto. Já o do Inácio fala de uma questão que também me interessa, mas não acho que esse mérito do filme (lidar com o real, mostrar em vez de demonstrar) o torna grande, apenas interessante e respeitável.
Talvez numa revisão aconteça o encantamento que não veio num primeiro contato. Porém, sintoma de que o filme não bateu em mim, sequer me animo de fato a revê-lo. Se tivesse odiado, o faria; como só achei bom, vou priorizar outras revisões – Bressane – ou a primeiros contatos – Guiraudie, Lina Chamie.
Clareza de interesses: Azul é a cor mais quente está todo estruturado na ausência de distanciamento entre a câmera e a personagem, Adèle, a encantadora menina em sua jornada de saída da infância e da adolescência para os primeiros passos na vida adulta. Ao colar a câmera na atriz incessantemente está explícito: teremos de enxergar e sentir o mundo tal como Adèle. Ela é, pois, nossa porta de entrada para o mundo. Não nos é dada muita possibilidade de respiro fora dos poros de Adèle. Na verdade, o ar que respiramos no filme vem sempre repassado de seus pulmões.
Momentos belos: o sexo é de uma beleza absurda em Azul é a cor mais quente. Minha sensação é que até esse filme chegar eu jamais tinha vivido uma representação cinematográfica autêntica do orgasmo feminino. Acho ainda mais curioso que o responsável por isso seja um diretOR, não uma diretORA.
Nessa falta de distância personagem-câmera-espectador, me soam muito bonitas as duas longas sequências em que Emma, se solidificando como pintora, é o centro das atenções (numa festa no jardim e numa vernissage). Adèle, ao mesmo tempo pertencente (porque companheira de Emma) e estrangeira (porque não é artista) à aquele mundo, está perdida. Na primeira, o que lhe resta é perguntar incessantemente “quer mais macarrão?”; na segunda, a atitude mais digna é assumir a derrota.
Fora isso e uma evidente capacidade olhar Adèle (especialmente no capítulo 1, quando ela está descobrindo o que é crescer), só vejo um filme correto e sólido – estão lá as necessárias elipses e o cuidado em escolher os intervalos certos para se recortar e apresentar ao público ou o amálgama da câmera com as personagens.
Há as escolhas questionáveis também: filmar no contraluz é tão arriscado quanto usar violino em trilha sonora, pois a chance de desandar é gigante. E quando Kechiche filma um beijo com a luz do sol estourando entre os lábios das meninas eu já acho um pouco boboca demais. Infantil também é voltar ao parque onde tudo começou e que agora guarda rastros de melancolia; ou terminar com aquele plano para lá de previsível; ou o maniqueísmo fácil dos pais de Emma serem liberais, enquanto os de Adèle são os conservadores.
[Quem leu o texto até agora não encontrou uma vez sequer a palavra “polêmica”. Simples: ela não existe. A maneira que o filme foi circundado e acusado de polêmico ou a prisão ao jornalismo declaratório, que ficou levando a troca de farpas entre diretor e atriz no tom “ele me explorou”-“ela quer tirar vantagem”, só vem a ilustrar o vazio do debate cultural].
Até agora, li duas críticas de Azul é a cor mais quente. Ambas escritas por quem gostou muito do filme. A primeira de Carol Almeida [clique aqui e leia], que faz uma defesa do filme sob o ponto de vista de quem embarcou. A segunda do Inácio Araújo [clique aqui e leia], que defende o filme por sentir que ele responde a uma inquietação que é cara ao crítico: a tendência do cinema contemporâneo se isolar do mundo.
Acho o texto da Carol bonito, leitura complementada na conversa que tivemos. Mas como ela fala de um lugar de quem embarcou, o diálogo vai só até certo ponto. Já o do Inácio fala de uma questão que também me interessa, mas não acho que esse mérito do filme (lidar com o real, mostrar em vez de demonstrar) o torna grande, apenas interessante e respeitável.
Talvez numa revisão aconteça o encantamento que não veio num primeiro contato. Porém, sintoma de que o filme não bateu em mim, sequer me animo de fato a revê-lo. Se tivesse odiado, o faria; como só achei bom, vou priorizar outras revisões – Bressane – ou a primeiros contatos – Guiraudie, Lina Chamie.
segunda-feira, 2 de dezembro de 2013
Em breve, Educação Sentimental
Julio Bressane é um dos poucos realizadores brasileiros que, quando tomamos conhecimento de um filme novo seu, desperta a ansiedade por vê-lo, revê-lo. Pois os filmes de Bressane provocam algo raro: a necessidade de deslocamento do espectador em direção ao filme. Mais: a obrigação em reter o filme, continuar elaborando-o muitos dias após a sessão; assistir novamente, descobrir o que esteve oculto na primeira sessão, decodificar racionalmente um encantamento inicial do sensível.
Estreia nesta sexta (6/11) Educação Sentimental [atualização: estreia adiada para 13/12], que recentemente passou na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo - para mim, um dos três melhores longas do festival ao lado de Cães Errantes, de Tsai Ming-Liang, e Tatuagem, de Hilton Lacerda. Nele Bressane elabora duas coisas do passado: uma certa maneira de se relacionar com a cultura (especialmente a leitura) e com o amor (prefere-se o mistério e a sugestão à exposição); algo que se perde: a película, essa espécie em extinção.
A matéria do amigo Paulo Camargo [clique aqui e leia], misto de entrevista com o realizador e apanhado de impressões a respeito do filme, capta precisamente o que é Educação Sentimental. Recomendo também aos que já assistiram/assistirão ao filme e buscam uma leitura complementar de forma a dialogar percepções distintas as críticas de Sergio Alpendre na Revista Interlúdio [clique aqui e leia] e de Marcelo Miranda no Filmes Polvo [clique aqui e leia].
domingo, 1 de dezembro de 2013
Crô, o filme - Crítica
Quando O Segredo de Brokeback Mountain construiu sua trajetória nos cinemas brasileiros uma parte significativa do público gay abraçou o filme como sendo seu, emocionando-se com a tragédia de Jack e Ennis, sentindo-se representado com tal obra.
À parte das qualidades evidentes que o filme tem, o que nós, gays, não percebemos – ou preferimos não perceber à época – é o quão heteronormativo é o filme de Ang Lee. Recapitulemos: Jack é morto como um animal a golpes de foice que assistimos em flashes; Já Ennis experencia um outro tipo de morte, a da alma, prendendo-se numa relação de fachada com uma mulher.
No olhar do filme, Jack e Ennis – e, em última instância, o homossexual – são pobres vítimas que tentam lutar contra essa atração que se mostra incontornável: o desejo por outro homem. O gay como um sofredor, fraco e dividido, vítima da própria sexualidade remonta longe e tem em Meu Passado me Condena um de seus exemplos mais fortes – não à toa o título original é Victim. Em Brokeback Mountain os dois únicos personagens gays do filme morrem e o mundo continua seguindo sua ordem “normal”. Uma coisa é repetir o discurso da vitimização em 1961, caso do filme de Basil Dearden. Outra é fazer o mesmo em 2005, como o de Lee.
Chegamos, pois, a Crô – o Filme, contraditoriamente heteronormativo e que, ao contrário da obra de Ang Lee, não tem quase nada de cinema (Ana Maria Braga, Ivete Sangalo e Gaby Amarantos não são participações especiais, mas casos assombrosos de product placement, ou marketing indireto). No longa de Bruno Barreto entra ainda um outro componente: a comédia sórdida.
Continue lendo a crítica de Crô, o filme na Revista Interlúdio.
À parte das qualidades evidentes que o filme tem, o que nós, gays, não percebemos – ou preferimos não perceber à época – é o quão heteronormativo é o filme de Ang Lee. Recapitulemos: Jack é morto como um animal a golpes de foice que assistimos em flashes; Já Ennis experencia um outro tipo de morte, a da alma, prendendo-se numa relação de fachada com uma mulher.
No olhar do filme, Jack e Ennis – e, em última instância, o homossexual – são pobres vítimas que tentam lutar contra essa atração que se mostra incontornável: o desejo por outro homem. O gay como um sofredor, fraco e dividido, vítima da própria sexualidade remonta longe e tem em Meu Passado me Condena um de seus exemplos mais fortes – não à toa o título original é Victim. Em Brokeback Mountain os dois únicos personagens gays do filme morrem e o mundo continua seguindo sua ordem “normal”. Uma coisa é repetir o discurso da vitimização em 1961, caso do filme de Basil Dearden. Outra é fazer o mesmo em 2005, como o de Lee.
Chegamos, pois, a Crô – o Filme, contraditoriamente heteronormativo e que, ao contrário da obra de Ang Lee, não tem quase nada de cinema (Ana Maria Braga, Ivete Sangalo e Gaby Amarantos não são participações especiais, mas casos assombrosos de product placement, ou marketing indireto). No longa de Bruno Barreto entra ainda um outro componente: a comédia sórdida.
Continue lendo a crítica de Crô, o filme na Revista Interlúdio.
sexta-feira, 29 de novembro de 2013
Mantenha o proceder
Uma pena que Mataram meu Irmão tenha voado dos cinemas – na verdade, passou durante uma semana em sessão única às 17h no CineSesc. Pois num momento em que o que chega aos cinemas é uma quantidade assustadora de filmes que somem na primeira ida ao banheiro, Mataram meu irmão tem peso.
Peso este que se estabelece já desde o começo. O filme abre com uma extensa conversa de telefônica, mas só enxergamos uma tela preta. Um homem quer saber como visitar o corpo do irmão, cujos restos foram transferidos para uma vala comum. A mulher, do outro lado da linha, responde com os tiques de burocracia comum a qualquer balcão de informação.
Quando surge o primeiro plano de fato (faróis de carros visto em desfoque numa câmera subjetiva, emulando o embaralhamento do horizonte de quem narra o filme – o próprio diretor), o filme já tem peso, seja no sentido da física (força que age sobre um corpo – no caso, o do espectador, que sentirá o filme nas costas) ou como relevância, uma qualidade que justifica ser assistido.
Mataram meu Irmão poderia ser um desastre. Porque é uma história trágica. Porque o realizador, Cristiano Burlan, está imerso no desenrolar dos fatos. Porque foi filmado em períodos distintos. Felizmente, o filme se sustenta. Ainda que se possa apontar senões, as ressalvas não fazem o filme desmoronar. Ele segue firme.
Quem é Rafael, o irmão morto? Responder a essa pergunta orienta o filme. Não de forma a sufoca-lo, obriga-lo a construir um discurso totalizante e definitivo sobre Rafael. Pelo contrário. Entrevistas com família próxima, família distante, família agregada. Somam-se contradições, o que é riquíssimo: um irmão diz que ele quis ser machão, a viúva defende sua honestidade, a tia relembra como ele era carinhoso, o outro irmão diz que o problema foi se meter com um primo doido. Mataram meu Irmão é uma espécie de Rashomon documental.
Nessa apresentação de pontos de vistas distintos surge, com força, uma narrativa do que é viver numa periferia de São Paulo. Ao negar ao espectador a obrigação do “quem-quando-como-onde-por quê”, Mataram meu irmão dá vida, carne e sangue a uma história anônima dessas que povoam diariamente um Cidade Alerta e seus equivalentes. Sensação que se intensifica na maneira que o filme está circunscrito: abre-se com a voz fria do Estado/instituição; fecha-se com as fotos frias do Estado/instituição.
Por um lado é sim possível assumir o desfecho da vida de Rafael como o desfecho de vida de muito jovem de periferia – basta olhá-los para além do recorte de jornal que ganham nuances. Por outro, não seria buscar a generalização de Mataram meu Irmão como retrato da periferia um equívoco que justamente reproduz um olhar totalizante e cego e deixa passar nuances?
Nesse relato sobre quem foi Rafael, só me recordo de uma canção de Sabotage, Zona Sul:
“Na Zona Sul, cotidiano difícil. Mantenha o proceder; quem não conter, tá fudido”.
sábado, 16 de novembro de 2013
Tatuagem - crítica
Partindo do amor entre um trintão dramaturgo/ator/artista/agitador anarco-dionisíaco e um cadete por volta dos 18 anos, Tatuagem reelabora o passado recente do Brasil fazendo uma intervenção nas fibras nervosas da história que estimulam a memória do cinema. Ao reordenar as possibilidades de percepção do passado, Tatuagem se volta para o presente. Tatuagem é, sem dúvidas, um filme político.
Tal reelaboração tem sua grande força na ética do olhar e no deslocamento do eixo de abordagem: Tatuagem dedica-se aos desviantes da expectativa nacional. Ainda que ambientado na ditadura (provavelmente no fim dos anos 1970), não busca sua legitimidade pela rota “Vem vamos embora que esperar não é saber” ou “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”. Tampouco almeja o eixo cinema novista ou o marginal – apesar de dialogar com alguns pontos do segundo.
Tatuagem está à margem. Primeiro pelo posicionamento geográfico. Não estamos nem no Rio, nem em São Paulo, lugares para os quais costumamos dar muito mais atenção ao pensar os rastros de nossa cinematografia. Estamos em Recife. Melhor: na periferia de Recife, num canto, numa esquina, dentro de um bunker de concreto que no filme se chama Chão de Estrelas. Não estamos no teatro engajado, nem no drama de bom gosto, muito menos na esfera do heteronormativo. Estamos, pois, numa manifestação artística de fruição corporal que está se lixando para o cânone.
Mas Tatuagem não quer o gueto – se o quisesse, talvez o rumo do cadete Fininha seria outro. O longa-metragem de ficção de estreia de Hilton Lacerda como diretor quer a luz. Mais do que olhar para a margem, ele dá à margem a mesma atenção que o cânone recebe ao interpretarmos o Brasil, o cinema daqui, o passado que nos define e nos representa.
Continue lendo a crítica de Tatuagem na Revista Interlúdio.
segunda-feira, 16 de setembro de 2013
Esse Amor que nos Consome - Crítica
Podemos iniciar um olhar a Esse Amor que nos Consome colocando em perspectiva a própria afirmação no título: de qual amor estamos falando? Por que ele nos consome?
À primeira vista, os personagens tem um amor pela dança. Afinal, trata-se de uma companhia que se instala num casarão antigo do centro do Rio de Janeiro e inicia um dedicado processo de ensaios. Passam algumas cenas, diálogos se desenrolam e temos um indicativo para a segunda pergunta: esse amor nos consome porque somos nanicos no mundo dos homens. Consome porque enquanto se pensa em como posicionar o corpo no espaço, falar algo pela linguagem não-verbal da dança, o capital, o progresso bate à porta, atravessa a poesia e até faz até escárnio.
O casarão está ocupado provisoriamente para os ensaios da Companhia Rubens Barbot Teatro de Dança. Uma placa de “Vende-se” está agarrada na janela – e essa placa representa a contagem final apocalíptica, sentido enfatizado pela montagem de Ricardo Pretti, que a trata quase como um metrônomo a ditar o compasso do filme. Enquanto ensaiam, vez ou outra o corretor traz um possível comprador para conhecer o imóvel. “Aqui em cima daria uma área de fumantes”; “o que esse pessoal tá fazendo ali? É dança”; “vai precisar reformar, é um investimento grande”, filosofam os postulantes a compradores.
Continue lendo a crítica de Esse Amor que nos Consome na Revista Interlúdio.
sexta-feira, 23 de agosto de 2013
Festival de Curtas no Crítica Curta
Leitores do Urso de Lata, breve aviso, que também serve como convite. O blog será pouco atualizado na próxima semana em decorrência do Festival de Curtas. Vou coordenar o projeto Crítica Curta, oficina de crítica que acontece durante o festival.
Os textos, produzidos por estudantes de audiovisual em São Paulo, serão publicados no Blog Crítica Curta [clique aqui e acesse]. Convido vocês a acompanhar diariamente as críticas por lá.
Até a próxima semana!
sexta-feira, 16 de agosto de 2013
Cinco Câmeras Quebradas - Mostra Mundo Árabe
Desolação e orgulho são sentimentos que acompanham a recepção a Cinco Câmeras Quebradas, crônica audiovisual em primeira pessoa dos crimes cometidos pelo Estado de Israel desde 2005 contra os palestinos do povoado de Bil'in.
A relação filme-espectador é direta. Não há rodeios. O camponês Emad Burnat comprou uma câmera para registrar o nascimento e crescimento de seu quarto filho, Jibreel. Cineasta autodidata, filma a família, as oliveiras, a terra, os amigos. Filma também o avanço gradual do Exército israelense e dos colonos, além dos protestos pacíficos do povoado.
Imagens que emanam sua origem endógena àquela realidade registradas por um cineasta camponês que filma guiado por uma vontade bastante clara: “Filmo para me curar”, diz Emad. Essa clareza no desejo é justamente o que potencializa o registro direto.
Aí entra o componente do desamparo inerente à experiência de Cinco Câmeras Quebradas: ocupação ilegal da terra, aparato bélico estrondoso, metralhadora de gás lacrimogênio, violência policial, prisão de crianças à noite, incêndios criminosos, assassinato de adultos, assassinato de crianças, impedimento do direito de ir e vir. Como não sentir-se desolado com essa repetição crônica de eventos, de um Estado que se esforça em suprimir, em sonegar ao outro qualquer coisa que lhe defina como humano?
Continue lendo a crítica de Cinco Câmeras Quebradas, destaque da Mostra Mundo Árabe, na Revista Interlúdio.
quarta-feira, 14 de agosto de 2013
Cine Holliúdy - crítica
*originalmente publicado na Revista Interlúdio durante a cobertura da Mostra de SP
Alguns tentam ser cinema popular (leia-se Família Vende Tudo). Outros genuinamente o são. Este é o caso de Cine Holliúdy, um desavergonhado e cômico escancaramento da precariedade em se fazer cinema no Brasil.
Num momento de ultrarrealismo cultivado por ágeis avanços tecnológicos, sempre há o choque, para um espectador desavisado, com a precariedade. Já foi assim com Na Carne e na Alma, derradeira e maravilhosa obra de Alberto Salvá, repleta de coragem e carente de dinheiro. Invariavelmente será assim durante a trajetória de Cine Holliúdy.
Mas por trás da falta de recursos e da engenharia em se fazer um filme de época, ambientado nos anos 1970 no sertão cearense, existe um potência, um discurso e momentos eficazes. Halder Gomes, que recentemente produziu longas bem ruins como As Mães de Chico Xavier e Bezerra de Menezes, mostra um domínio do tempo e do texto cômico. O dialeto “cearencês” e suas expressões bastante atípicas para quem não vem do Ceará é um convite ao riso.
Há também uma precisão em caracterizar a cidade/bairro e seus tipos (a gostosa, o galã, o gay, a fofoqueira, o riquinho etc), assim como uma incorporação interessante do cinema de gênero, em especial os filmes de kung fu, na textura do filme.
Esses aspectos, porém, mesmo que suficientes para se assistir a um filme, encerram-se numa conversa de canto, numa recomendação “vá vê-lo porque é muito divertido”. O que interessa mesmo é que Cine Holliúdy tem um quê de alegoria sobre o cineasta brasileiro, esse misto de artista e bobo da corte, criador e animador de torcida: aquele que tem um discurso para reconstruir a realidade com a arte, mas que tem de se desdobrar para produzir e, quando feito o filme, rebolar para que seja visto, notado.
Pois é isso que representa Francisgleydisson na sua luta em tentar manter seu cineminha enquanto a televisão se alastra até por locais remotos. A película que se arrebenta em Cine Holliúdy e o personagem que tem de reinventar a história do filme dentro do filme pode ser lido como um edital que não se concretiza, por que não? É um reflexo do contexto brasileiro, misto de aspirações industriais e realidade artesanal, ação entre amigos.
Só que o filme não é romântico. Não há catarse, solução mirabolante e irreal. Não é um filme para se fugir da realidade, apenas para tomar fôlego e voltar para a briga. Com clareza, percebe que viver das brechas é algo ontológico do ofício de cineasta aqui – o subdesenvolvimento é um estado, não um estágio, provocaria Paulo Emillio Salles Gomes há quatro décadas.
Talvez sem saber, Gomes realizou o espelho do nipo-iraniano Cut, um dos melhores filmes da Mostra no ano passado. Misto de filme de mafioso com declaração de amor ao cinema, Shuji, o protagonista, literalmente apanha para viver, com o corpo, sua paixão. Seu alimento não é a comida, mas os clássicos – Welles, Ford, Ozu, Mizoguchi.
Francisgleydisson somos nós.
sexta-feira, 9 de agosto de 2013
Camille Claudel, 1915 - Crítica
À aprisionada Camille observada pelo cinema de Bruno Dumont em Camille Claudel, 1915 não é oferecido o contraplano, o horizonte.
Quase tudo se dá no plano. Juliette Binoche percorre uma extensa partitura para dar uma cara às emoções. Mas o que olha o rosto dessa mulher? Qual ponto da paisagem – se é que há um – lhe chama a atenção? O que está nesse contraplano oculto que completaria o que vemos no plano?
Dumont sonega o contracampo. Quando o entrega, é a imagem do desespero. Uma árvore desavergonhadamente seca. Uma colega de hospício dizendo coisas desconexas. Uma enfermeira com olhar de falsa caridade. Há também, por vezes, o horizonte, a natureza, a vegetação bem distribuída. Mas Camille Claudel, 1915 se concentra tanto na personagem a observar algo que consolida, deliberadamente, a incômoda sensação de que esse lugar que ela enxerga fica mais e mais inalcançável.
Continue lendo a crítica de Camille Claudel, 1915 na Revista Interlúdio.
sexta-feira, 2 de agosto de 2013
É som de preto
A Mostra Oscar Micheaux: O Cinema Negro e a Segregação Racial é o mais forte evento de cinema do ano até o momento. Não necessariamente pela qualidade do conjunto de filmes – aí fica difícil bater as retrospectivas de Rivette e Hawks –, mas pelo gesto político que representa.
Pois se trata de uma página imprescindível de ser consultada por qualquer pessoa interessada pelo cinema americano numa perspectiva histórica: os Race Movies. Filmes feitos, protagonizados e voltados para o público negro, entre os anos 1920 e 50. Numa cinematografia majoritariamente racista até o final da década de 50, Oscar Micheaux e Spencer Williams tentaram encontrar e apresentar imagens autênticas da realidade afro-americana.
O que é autenticidade nesse contexto? Filmes que se negam a reproduzir os cinco principais esteriótipos gradualmente construídos por Hollywood sobre os negros: a estoica mucama, o serviçal dedicado e dócil, o trágico mulato dividido, o imbecilizado brincalhão e o violento rebelde ameaçador de mulheres virgens e brancas[1].
Filmes como Dentro de Nossas Portas (Within our Gates, 1920), no qual uma professora mulata do sul segue rumo ao norte para arrecadar fundos para manter uma escola voltada à alfabetização de negros pobres. Impossível não especular o furor que um filme como esse causou no público negro à época. Afinal, coloca-se o dedo em várias feridas: os linchamentos e assassinatos de negros cometidos por brancos no Sul, a manipulação da religião, o discurso reacionário por trás do aparente progressismo, o peso da educação para reverter o estado de subserviência.
No universo abarcado pela Mostra Oscar Micheaux até mesmo filmes com sérios problemas nos revelam algo. Marchando! (Where's my Man To-Nite! / Marching on!, 1943) adota um discurso proselitista a favor do patriotismo (o que se justifica no desejo da população marginalizada dizer “hey, eu também pertenço a essa nação”). Interessante lembrar que o cenário se alteraria radicalmente nos anos 1960, quando soldados e filhos de soldados cobrariam a conta do país, dizendo “por que matar vietnamitas a favor de um país que só me deu preconceito, linchamento, moradia precária e subempregos?”.
Enquanto em Marchando! o personagem é convertido e pela providência divina percebe que estava errado ao questionar o Exército, em No Vietnamese Ever Called me Nigger (1968) uma mãe diz: “Nossos filhos vão pra guerra, mas nós continuamos morando em casas com ratos”.
Revisitar os Race Movies da Mostra Oscar Micheaux – que prossegue no CCBB-SP até o dia 4 e no CCBB-RJ até o dia 19 – é ganhar munição para se relacionar com outra página insuficientemente refletida na crítica: o Blaxploitation. Conceitos como relevância social e autenticidade são transformados se comparamos Micheaux com um Ossie Davis, mas existem as relações de um cinema que não esconde suas intenções: somos negros e queremos um público de negros.
Parece bobo esse movimento de olhar para trás, reconstruir os traços do passado. Não é. Django Livre não existiria sem o Blaxploitation. Possivelmente jamais veríamos o Eddie Murphy de Um Tira da Pesada não fosse um Shaft, que viria responder à passividade dos filmes-veículo para Sidney Poitier, que por sua vez remontam justamente aos... Race Movies.
[1] BOGLE, Donald (1988). Blacks in American Films and Television: An Encyclopedia: 1930–1971. New York, Garland.
Abaixo a programação do restante da mostra em São Paulo.
Textos relacionados:
Nenhum vietnamita jamais me chamou de toró
Jackie Robinson, não reaja
segunda-feira, 15 de julho de 2013
Não reaja
Me chamou atenção em 42 – A História de uma Lenda, cinebiografia do primeiro jogador negro de beisebol – Jackie Robinson – a integrar a MLB e iniciar o rompimento da estrutura racista naquele esporte: a repetição do diálogo “Não reaja”.
Ao decidir contratar um jogador negro – lembremos que até 1947 existiam a MLB, a liga dos brancos, e inúmeras ligas menores apenas com negros –, o diretor do Brooklyn Dodgers explica a Robinson o porquê de tê-lo escolhido: “Preciso de um jogador que tenha os culhões de não responder [às provocações]”.
Não duvido que, além de seu talento como jogador – bom rebatedor e muita velocidade para roubar bases –, o que garantiu a sobrevivência de Robinson numa estrutura racista sofisticada, que atribui a culpa à vítima, é a não-reação. Ficar quietor, fazer o seu trabalho, mostrar-se bom cidadão (de preferência pai de família), andar bem vestido e falar direito foram passaporte, num momento pré-Civil Rights Movement, para conseguir algum respeito.
Mas 2013 não é 1947. Ainda que aceite a intenção do filme em representar a postura de uma época, não consigo desfarçar o desconforto no elogio à não-reação em 42 – A História de Uma Lenda. Há um componente político em tal escolha, seja ela consciente ou não.
Para qual público se dirige o filme de Brian Helgeland? Pois bem, repetir que a solução é não reagir, não responder às ofensas, não se articular contra à impunidade do racismo num filme produzido em 2013 – mesmo que retratando um contexto de cinquenta anos atrás – implica uma responsabilidade.
Todos os personagens negros do filme estão entre a docilidade e a resignação. Robinson responde ao racismo indo para o vestiário e destruindo um taco. Seu assistente/assessor de imprensa se conforma com a proibição para negros frequentarem a sala de imprensa. Sua mulher, no começo indignada, vê sua rebeldia diluída no decorrer do filme.
Quem reage? Os brancos. O dono do time, que manda outros managers racistas para aquele lugar. Os colegas de time, que peitam um técnico adversário.
Repito: o contexto do filme é pré-Direitos Civis, Rosa Parks, Luther King Jr., Sidney Poitier, Panteras Negras etc. Mas reiterar o “não reaja” traz implícita uma escolha que é política, aceite-se ou não.
Me interessam mais os que reagem. Um Django Livre me diz mais do que um 42 – ainda que problematize um acesso ao heroísmo condicionado pelo branco [leia aqui]. Que venham mais heróis que reajam, mais herdeiros do Blaxploitation, mais Sweet Sweetback's Baadasssss Song.
Textos relacionados:
Django Livre, um western blaxploitation
Nenhum vietnamita jamais me chamou de toró
Blaxploitation: o gênero que obrigou o mundo a olhar os negros
sexta-feira, 28 de junho de 2013
Tabu - Crítica
*originalmente publicado na versão impressa da Revista de Cinema. - edição 114
Pode-se argumentar que o maior chamativo é o amor proibido entre Aurora e Ventura. Porém, há muito mais em jogo em Tabu, ganhador do prêmio Alfred Bauer, dedicado ao filme que abre novas perspectivas de linguagem, no Festival de Berlim em 2012.
Temos, para começar, as nuvens no céu que ganham formas de animais, observadas pelo casal apaixonado com o alumbramento de quem descobre um mundo novo. Além da beleza – como não se comover com os olhos felizes dos personagens? –, tal cena evidencia que Tabu preocupa-se em falar do próprio cinema e situa o amor de Aurora e Ventura num tempo específico.
O tempo do olhar virgem do espectador, disposto a acreditar numa imagem encantada e reveladora, que guardava um mistério – lembremos da afirmação de Godard na abertura de História(s) do Cinema – Todas as Histórias: “Não vá mostrar todas as coisas, guarde uma margem para o indefinido”.
A imagem cinematográfica em Tabu apela para um tempo em que um cidadão não era solapado por cinco, sete telas num vagão de metrô. Tempo em que o olho podia descansar, vagar até encontrar o que realmente merecia ser olhado. Hoje, a sensação é que olhamos por automatismo, não por opção. Olhamos porque está lá, não porque queremos olhar.
Estar alerta a essa nuance na qual o filme de Miguel Gomes investe é confirmar que, a despeito de ser rodado em preto e branco, num formato de tela que remete aos anos 1940 (janela 1.37:1), de ter os diálogos de sua segunda parte silenciados, cobertos por uma estupenda narração em off, Tabu é um filme contemporâneo, sobre o status da imagem no presente.
O que, automaticamente, já o coloca um passo a frente como gesto político quando comparado com O Artista. Se Michel Hazanavicius olha com lentes encantadas para um passado adornado, emulando a possibilidade de um cinema antigo no mundo contemporâneo, Tabu, em todos os seus gestos de “parecer” antigo, não quer prestar homenagem ao cinema, mas inserir-se num tecido histórico. Consciente do passado, Gomes pensa o presente.
Essa é uma das portas que Tabu deixa aberta para refletir sobre a imagem no mundo contemporâneo – tal como fazemos com o seguimento da videocaptura do corpo de Denis Lavant em Holy Motors. Pela mesma porta passa também um questionamento sobre o título do filme, que retoma ao derradeiro longa de Murnau de 1931.
Mas há também uma magia de outra ordem: o amor e a saudade. Apesar do risco da generalização, não dá para escapar: Tabu é uma das mais lindas histórias de amor do cinema contemporâneo. E o que a torna ainda mais tocante é seu caráter inesperado: só o mais otimista dos espectadores imaginaria que a megera mimada Aurora da primeira parte do filme, intitulada Paraíso Perdido seria, de fato, um ser humano com coração, com aventuras, com vida.
Gomes indica nas rachaduras – uma citação a um crocodilo, um certo tratar com a criada, uma melancolia pelo abandono da filha – que Aurora teve uma vida. Mas quando a segunda parte se descortina, filmada como num sonho, que se torna ainda mais lindo porque granulado em preto e branco, com personagens vivendo a quintessência do clichê hollywoodiano, Aurora deixa de ser a megera e se torna mulher.
Não existe, porém, idealização. Se por um lado está presente a ternura com os personagens, por outro aparece a ironia. Gomes desvela o custo político de se viver no paraíso, ilustrando a relação de dominação, poder e subserviência envolvendo os portugueses e os povos dos territórios invadidos – não à toa o desenrolar do romance “coincide” com o levante pela independência. Pois no rastro de amor há também a crueza do retrato dessa elite débil que tem saudade do mundo “perfeito” – já que às custas do outro.
Filme mais vultoso dentro da belíssima filmografia de Miguel Gomes, Tabu vai do amor à política, da memória ao cinema, do passado ao presente, da alegria à melancolia.
Tabu (Portugal, 118 min., 2012)
Cotação: 5 estrelas
Direção: Miguel Gomes
Distribuição: Espaço Filmes
Estreia: 28 de junho
Textos relacionados:
Entrevista com Miguel Gomes. "Para que fazer cinema comercial?"
Análise: Os curtas e longas anteriores de Miguel Gomes
quarta-feira, 19 de junho de 2013
Manifestações e Trabalhar Cansa: o novo
Este blog tem andado em silêncio por duas razões. Em parte pelo acúmulo de trabalho, que tem me impedido de escrever mais atentamente sobre alguns assuntos (Esses não faltam: por que gostaram tanto de Faroeste Caboclo, meu Deus?!; rever A Memória que me Contam, de Lúcia Murat, agora sem a correria do Festival de Brasília; o filme novo do Shyamalan, Depois da Terra).
Em parte porque – o que se segue é óbvio, mas vai que você andou por Marte nos últimos dias – a cidade de São Paulo está fervendo. A semana passada foi especialmente complicada pela repressão absurda da polícia e a prisão arbitrária do meu amigo Pedro (o jornalista Pedro Ribeiro Nogueira).
Reunido com amigos para assistir o épico jogo 6 entre Miami Heat e San Antonio Spurs na NBA, falávamos de basquete, por supuesto, mas também das duas últimas manifestações. Do temor que uma bandeira específica – revogar o aumento da passagem do transporte público – se tornasse um guarda-chuva que, no fim das contas, acabasse abrigando a turma daquela bobagem monumental chamada Cansei. Imagino que neste momento, qualquer pessoa de bom senso esteja tentando entender o que está acontecendo porque a turma do Cansei realmente colou achando que a onda é a mesma para surfar.
Por que os veículos tradicionais que antes pediam uma ação firme da PM (editoriais da Folha e do Estadão) agora diferenciam manifestantes, ativistas e vândalos? Por que a capa de Veja coloca na mesma manchete tarifa do transporte, corrupção e criminalidade? Por que tem gente cantando hino nas manifestações?! Por que surgiu uma petição pelo impeachment da Dilma?! Por que muita gente no Facebook se coloca como se estivesse num Fla-Flu?
Enfim, questões. Basicamente, é isso que temos, aqueles com menos pressa em fazer comentários sucintos e definitivos sobre o que se passa. Ora a clareza (perceber que tem gente que não está acostumada a manifestações), ora mais dúvida (como assim acham que dá para resumir tudo num “O Brasil acordou”?).
Essa dúvida com o novo – veja bem, o novo não é a manifestação ou a politização, porque afirmar isso é embarcar no “Brasil acordou” e desconsiderar a pauta de movimentos sociais acordados há bastante tempo – me lembra as bobagens que já se disse, e continua dizendo, sobre o cinema, sobre um filme que demanda uma codificação que está além do repertório, do vocabulário e da vontade do espectador.
Tipo os narizes torcidos para Holy Motors. É obrigatório gostar do filme do Carax? Evidente que não. Mas falar “que não é cinema”, “que não faz sentido” é demonstração de preguiça, Pedro Bó. Ou falar que não gostou de Trabalhar Cansa “porque as atuações são artificiais demais” é cegueira apressada de quem só aceita o registro naturalista, de quem só está disposto a enquadrar o filme na sua própria cartilha do Isso Pode, Aquilo Não.
É o mesmo que a NAACP fez com o Blaxploitation. Filmes como Sweet Sweetback Baaaadasss Song ou Shaft eram novos e com posicionamento político que não correspondiam às aspirações integracionistas do negro bem comportado, o Sidney Poitier de Advinhe Quem Vem Pra Jantar?.
Ou ao preconceito com a Nouvelle Vague ou com um filme como Acossado, que detratores acusam de embaralhar o começo, meio e fim.
Ou seja, o novo é mais complexo do que chavões dão conta. Não dá para abarcar as últimas semanas com posts apressados de Facebook, nem com 140 caracteres de Twitter, nem com “o Brasil acordou” Assim como não dá para enquadrar um filme, uma tendência, um movimento que foge do repertório tradicional com “isso não é cinema”, “isso é artificial”.
Precisamos, ora pois, parar e pensar antes de falar desenfreadamente. Em vez de reclamarmos “do que não faz sentido em Trabalhar Cansa”, que tal pensarmos sobre que raios é aquela mancha estranha na parede que resiste em desaparecer?
Em tempo, alguns links para pensarmos:
Leonardo Sakamoto sobre a mistura dos coxinhas, anauês e afins
Débora Lessa e Camila Petroni no Brasil de Fato sobre o perigo do hino
Antonio Prata na Folha sobre não estarmos entendendo nada
quinta-feira, 30 de maio de 2013
O céu de Tabu
Qual minha surpresa ao parar no charmoso café que frequento após o horário de almoço desde que me mudei para o Tatuapé? Que eles, tal como a maioria dos estabelecimentos em São Paulo, decidiram colocar uma televisão. A justificativa: “É que os clientes estão pedindo”.
Mostro-lhes minha decepção. Digo que deixarei de frequentar o lugar. “Mas vamos colocar o volume baixinho”. Não se trata de som, mas da folga ao olho, de não ser condicionado a olhar uma imagem apenas porque ela está lá. “Se você não gostar pode reclamar com as meninas”. Está bem, farei. “Vamos testar se dará certo”. Certamente dará, sou exceção. “Na verdade, não. Outro cliente já reclamou”.
Penso num filme como Tabu, de Miguel Gomes, que deve estrear na outra sexta, 7, caso a monocultura do circuito permita. Há uma cena linda em que os apaixonados Ventura e Aurora curtem um momento idílico. Olham para o céu. As nuvens, repentinamente, ganham formas de animais.
Gomes, em tal sequência, mas também no restante do filme, fala justamente dessa perda da virgindade do olhar, de se encantar pela imagem cinematográfica, de acreditar na “mentira” que ela conta. Isso num contexto contemporâneo, em que entre nós e o mundo existe quase sempre uma tela.
Na porta do tal café o avô segura a criança no colo. Ele aponta para o céu e diz: “Olha lá, o avião”. Aponta para o chão. “Cadê o au-au?”.
Quiçá não esteja tão longe o dia em que um avô mostrará para o neto o céu, o avião, o cachorro apenas numa tela de celular. Em que só conseguiremos nos sensibilizar pelo mundo quando este vier mediado – tal como a paisagem francesa na limusine-camarim de Holy Motors.
sexta-feira, 24 de maio de 2013
Nenhum vietnamita jamais me chamou de toró*
Um pouco depois das aspirações integracionistas da NAACP ou os filmes-veículo de Sidney Poitier. Um pouco antes do boom do blaxploitation, dos heróis desavergonhados e sedutores. Num período de transição do cinema americano – 1966 é um ano chave no desespero dos estúdios em trazer o público de volta às salas de cinema – existe, silenciosa, uma produção documental produzida pelo viés dos negros.
A conjuntura, lembremos, é de mudança do tom. Se no começo da década predomina o discurso de Martin Luther King pela não-violência, em favor das marchas, dos sit-in, de se integrar às porções da sociedade majoritariamente brancas, no crepúsculo dos anos 1960 intensifica-se a ideia da autodefesa (pela violência, se necessário), do orgulho, da ultra-expansão da negritude, do alargamento de uma comunidade de iguais.
O que, grosso modo, chamamos de Black Power.
É preciso, pois, tirar da escuridão alguns desses documentários. A começar por No Vietnamese Ever Called Me Nigger (1968). Filme de estrutura bastante simples. De um lado, entrevista com três veteranos da Guerra do Vietnã – todos negros –, problematizando a óbvia impossibilidade de defender, em território invadido, uma nação que lhe nega a cidadania. Do outro, uma passeata anti-guerra no Harlem, acompanhada do tradicional povo fala.
Salta nesse documentário o calor da hora, a frase dita sem censura, a postura que pensa na intervenção no presente, não na posteridade – e por isso mesmo torna-se histórica. Na tela um cenário em ebulição. Completos anônimos tornam-se sujeitos. Um lunático defende, ao lado da passeata, uma supremacia branca; duas mães discutem como a guerra lhes furtou os filhos; uma senhora esbraveja contra o governo, que nada lhe dá, mas tudo lhe exige.
A câmera nem sempre sabe o que filmar. Essa “imperfeição” dá também vida a No Vietnamese Ever Called Me Nigger: invade-nos como correnteza a sensação de que um presente vivo, fulmegante norteia o sentido das imagens no documentário.
Outro documentário que não merece permanecer alheio ao conhecimento dos cinéfilos, pesquisadores e público em geral é Huey (1968), também conhecido como Black Panthers. Dirigido por Agnès Varda, o filme sobrevive como um imenso documento de uma mudança de pensamento: da postura de pesar à identidade coletiva fincada no orgulho da própria imagem.
Uma abordagem direta, in your face, de uma realidade, editada em duas frentes. De um lado, protestos para a liberação de Huey P. Newton, um dos líderes do Partido dos Panteras Negras para Autodefesa. Do outro, a convenção do partido, realizada no aniversário de Huey, repleta de discursos apaixonados.
Novamente, a força do presente. Um dos gritos de guerra dos manifestantes diz “No more pigs in our communities – off the pigs”, algo como “Chega dos gambés nas nossas vizinhanças – cai fora bota-preta!”. Agnès, genial, ainda constrói dois lindos momentos cinematográficos: ao posicionar a câmera em várias posições durante a convenção dos panteras, encontrando anônimos dos mais diversos perfis, e quando passeia com a câmera dentro de um carro pela vizinhança, ilustrando as imagens com a fala extra diegética de Stokley Carmichael.
No Vietnamese Ever Called Me Nigger e Huey/Black Panthers, facilmente acessível por torrent [baixe aqui], são dois de dezenas de documentários que capturam o calor do momento. É preciso resgatar, exibir e discutir também The Jungle (1967) [assista aqui] , You Dig It? (1967), de Richard Mason, Portrait of Jason, de Shirley Clarke.
Quem sabe o Amir Labaki, que trouxe o belo The Black Power Mixtape para a abertura do É Tudo Verdade em 2011 não se anima em fazer uma retrospectiva desses documentários independentes de temática negra dos anos 60?
*o título deste post é uma tentativa frustrada de traduzir No Vietnamese Ever Called me Nigger, frase extraída da antológica entrevista de Muhammad Ali, na qual declarou: “I ain't got not quarrel with them Viet Cong. No Viet Cong ever called me nigger” (“Não tenho nenhuma conta a acertar com eles. Nenhum vietnamita jamais me chamou de toró”). Traduzir the N word para o português é bastante complicado.
Textos relacionados
Blaxploitation: o gênero que obrigou o mundo a olhar os negros
sexta-feira, 10 de maio de 2013
O que se Move - Crítica
O que se Move, de Caetano Gotardo |
Domínio do tempo. Clareza sobre o que mostrar ou esconder, dizer ou omitir. Não temer o ridículo e confiança para sustentar em alto nível os voos atrevidos. Essas são características que fazem de O Que se Move uma promissora estreia de Caetano Gotardo (Areia, O Menino Japonês). Digo promissora mesmo, não dessas legitimações apressadas que nós da crítica por vezes nos sentimos tentados a executar.
Não fosse um adjetivo surrupiado muitas vezes para a defesa de um cinema picareta, “sensível” seria a primeira qualidade a se ressaltar no longa. Prefiro, então, concentrar-me na solidez do conjunto, o que falta a bons filmes de estreia vistos neste ano, tais como Boa Sorte, Meu Amor, Eles Voltam e As Horas Vulgares.
Essa solidez está fincada na dramaturgia. Há também um trabalho casado de direção e fotografia, posteriormente reforçado na montagem, que evidencia e justifica as escolhas.
Chama a atenção a coerência em que as histórias de três mães e seus filhos são elaboradas. Num ritmo que prioriza a calma em detrimento à pressa – um elemento quase de provocação, já que o filme se passa em São Paulo –, O Que se Move tem um punhado de planos e diálogos aparentemente desnecessários. O ganso no parque, as camisinhas sob as folhas, as mães que olham longamente o bebê.
Não há um show room de enquadramentos supostamente poéticos. Eles simplesmente o são porque justificáveis para o conjunto do filme. Se o adolescente pergunta como os gansos preenchem o tempo é porque saberemos cenas depois que o mesmo garoto ocupou seus dias e noites livres nas férias de maneira que irá destruir toda uma família. Vale o mesmo para a inocência com as camisinhas encontradas e o observar atento de um filho pequeno.
Nos momentos intraduzíveis de dor e emoção das personagens, o filme larga o registro realista e se permite flutuar. É quando Gotardo faz aquilo que Christophe Honoré não sabe: musicalizar a vida. Tocadas ou consternadas, as mães não dizem os diálogos, mas cantam. E o filme torna-se lindamente um musical melodramático. Não cai no piegas e dá a chance às personagens em suavizar a dor e a emoção por meio da música. A fruição musical permite a elas viver sentimentos de difícil transformação em palavras. E isso não tem nada a ver com as bobagens fetichistas de Catherine Deneuve tristonha, sacudindo a bolsa e cantando na triste noite francesa em As Bem Amadas.
Mas seria incompleto – não são incompletos todos os textos publicados durante um festival de cinema? – dirigir um olhar unicamente formalista ao filme. O Que se Move é um filme cheio, preenchido de amor e dor, de emoções guiadas pelo instinto cuidador maternal. Os pais são coadjuvantes de uma produção com talento raro em aproximar-se do sentimento de tristeza sem cair nos extremos: nem os da aspereza como Preciosa, nem o fofinho hipster de Miranda July.
O Que se Move é afeto no cinema, não cinema do afeto.
terça-feira, 7 de maio de 2013
Godard, um artista além do cinema
Jean-Luc Godard é foco de exposição no Oi Futuro |
*publicado na edição impressa do jornal Valor Econômico desta terça-feira (7/5)
Jean-Luc Godard. A simples menção ao artista pode causar reações extremas. Autor de filmes como Acossado (1960) e O Demônio das Onze Horas (1965), o diretor de 82 anos é tema de exposição a partir de hoje no Oi Futuro Flamengo, no Rio.
"Expo(r) Godard - Viagens em Utopia" tem projeções, debates, ambientes multimídia e espaços dedicados à apreciação sonora, aspecto fundamental para a compreensão da obra do diretor. Em vez de apostar num conjunto de filmes mais conhecidos, a exposição pretende revelar um Godard pouco explorado.
"Não será caótico, pelo contrário. O objetivo é organizar para o público alguns princípios da base do trabalho de Godard desde meados dos anos 70", diz Anne Marquez, curadora da exposição em parceria com Dominique Païni.
Continue lendo o texto sobre a Expo(r) Godard no site do Valor Econômico.
Textos relacionados:
Depois de Maio, de Olivier Assayas - Crítica
Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague - Entrevista com o diretor Emmanuel Laurent
quinta-feira, 2 de maio de 2013
O Sonho de Wadjda celebra a liberdade, diz diretora árabe
Waad Mohammed, protagonista de O Sonho de Wadjda |
Desde a première de O Sonho de Wadjda, no Festival de Veneza de 2012, Haifaa Al Mansour tem ouvido a mesma pergunta: "Como você se sente em ser a primeira mulher da Arábia Saudita a dirigir um longa-metragem?".
Haifaa, porém, não se incomoda com a insistência na questão. "Sinto-me orgulhosa e espero inspirar outras mulheres", diz a diretora. O Sonho de Wadjda, que estreia amanhã no Brasil, conta a história da esperta e desbocada Wadjda, uma menina de dez anos que calça All Star, não cobre os cabelos como manda o costume local e ouve rock.
Seu sonho é comprar uma bicicleta verde e apostar corrida com seu melhor amigo. Há um pequeno empecilho: meninas que andam de bicicleta não são bem- vistas naquele país. Num misto de inocência, rebeldia e coragem, Wadjda questiona os valores de uma sociedade patriarcal.
"Não queria fazer um panfleto, mas sim acompanhar a jornada de uma menina, suas vitórias e derrotas, revelar sua alma", afirma a diretora. Ainda assim, o pioneirismo de seu feito e o impacto simbólico dos questionamentos da personagem acompanham Haifa nos festivais em que o longa é exibido, de Nova York a Dubai.
Continue lendo a entrevista no site do Valor Econômico.
sábado, 27 de abril de 2013
Depois de Maio - Crítica
Se na minissérie Carlos o diretor Olivier Assayas aproximou-se de um momento histórico para tecer comentários sobre o outro (no caso o terrorista político Carlos, o Chacal), em Depois de Maio (Après Mai, 2012) ele se insere e se assume nesse contexto de radicalização política – virada dos anos 1970.
São dois registros distintos: o primeiro, um policial; este, intimista, do sujeito enfrentando um contexto. Por serem histórias próximas, é tentador colocar ambos os filmes lado a lado e fazer uma medição de “gosto” ou “não gosto” a partir daí. Cada um faz o que quer, mas me parece que Depois de Maio quer estar mais próximo do registro de Horas de Verão, não de Carlos.
Pois é importante notar que, antes de ser um retrato de uma geração, panorama disso ou daquilo, Depois de Maio é um filme sobre escolhas. Mais: sobre o complicado arranjo da permanência do afeto X quebra dos laços de amizade e amor. Tal equação é atemporal e comum a quem vive a transição dos 17-21 anos. Quando ambientada num momento em que a política é a protagonista, demandando posições definidas, as escolhas e suas consequências ganham pesos maiores.
Assayas demarca com muita firmeza o terreno que une seus personagens. Algumas informações são fornecidas aos poucos: algum lugar perto de Paris, 1971. Primeira cena: o professor cita um filósofo e diz que entre céu e inferno existe a vida. Próxima cena, Gilles panfleta em frente a escola e lembra que a manifestação foi proibida pela polícia. Mais alguns planos, a manifestação acontece. Batalha campal (e desigual), os policiais destroçam os jovens estudantes. Um grupo sai ileso.
A partir de cenas enxutas, diretas e pontuais que Assayas demarca a coesão desse grupo, unidos pelo afeto. O que o filme mostrará no restante do tempo não é o fim do afeto, mas a desintegração dos laços por conta das escolhas. E Assayas trabalha com naturalidade as características individuais de cada um de seus personagens e a inviabilidade de todos estarem juntos.
Tal como em Horas de Verão, o que está em jogo é a transmissão do bastão. Lá do patrimônio da família após a morte da patriarca, aqui do protagonismo político – não à toa, o título do filme faz referência a Maio de 68. Assayas se posiciona como pertencente à geração que recebe o bastão e mostra o que diferentes pessoas fizeram com essa atribuição.
Também como no filme de há quatro anos, o filme não demarca o momento da implosão, da ruptura. O rompimento é diluído em diversas partes, tornando Depois de Maio não uma narrativa de grandes acontecimentos, mas de colocações prosaicas que formam o quebra-cabeça macro.
Por haver um domínio da gramática, cada pequeno aumento da distância dos amigos é demarcado ou pelo fade out (a tela que escurece) ou por uma grua, que parece dizer adeus a personagens, a sentimentos, a fases e a momentos. Mais um exemplar de que Assayas não tem o fetiche da assinatura, respeitando o que a cena pede e o plano que lhe é adequado.
Mas há uma diferença que torna Horas de Verão um filme com mais lastro que Depois de Maio. Naquele, os laços familiares encontraram na questão da herança patrimonial e das peças de museu um poderoso e sutil subtexto sobre o futuro de um país. Neste, há menos fios a serem puxados para compor uma leitura.
*originalmente publicado na Revista Interlúdio em outubro de 2012, durante a Mostra de São Paulo
Texto relacionado
Um filme de Assayas e o executivo da Yoki
quinta-feira, 18 de abril de 2013
Morre Aloysio Raulino
Descubro agora, no Facebook, que o Aloysio Raulino morreu. Perfis de amigos dizem que foi enfarto fulminante. O velório acontece neste quinta-feira (18), a partir das 19h30, no Cemitério do Araçá, e o enterro será amanhã.
Pode parecer frase de boçal, um chavão do tipo “time que quer ganhar não pode escolher adversário”, mas estamos perdendo gente boa que tinha lenha para queimar. Carlão em 14 de junho do ano passado, agora Raulino, aos 66 anos.
Raulino era fotógrafo de cinema. Seu último grande trabalho foi Os Residentes, de Tiago Mata Machado, baita filme que rachou a crítica. Mas dá para lembrar também de outro longa, que o tempo já permite posicioná-lo no topo do que o cinema brasileiro fez nos últimos vinte anos: Serras da Desordem, de Andrea Tonacci -- eleito o melhor filme no dossiê da Revista Interlúdio [clique aqui e leia]
Recentemente houve também Corpo Presente, de Marcelo Toledo e Paolo Gregori, O Aborto dos Outros, de Carla Gallo. O Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento. Voltando mais um pouco, São Paulo – Sinfonia e Cacofonia, de Jean-Claude Bernadet, A Luz das Palavras, O Homem que Virou Suco, de João Batista de Andrade.
Vez ou outra, um pedaço desconhecido da carreira de Raulino é resgatado: Noites Paraguayas (1982), seu solitário longa-metragem na direção, e os curtas nos anos 1970, especialmente os do final da década – O Tigre e a Gazela (1976) e Poto de Santos (1978).
Silêncio em respeito à sua partida.
Aos que não conhecem o trabalho de Raulino duas recomendações de leitura. Primeiro, texto de Cid Nader sobre Noites Paraguayas, publicado na extinta Revista Zingu [clique aqui e leia] e o de Luís Alberto Rocha Melo, na revista Filme Cultura nº58 (edição dedicada ao som no cinema), analisando os sons de Lacrimosa, O Tigre e a gazela e Porto de Santos. [clique aqui e leia].
terça-feira, 9 de abril de 2013
Dentro da Casa, de François Ozon
A família, em especial a mulher – geralmente mãe ou esposa –, é o que continua importando a François Ozon, até mesmo num filme como Dentro da Casa, que especula sobre o ato de observar o outro num misto de fascínio hitchcockiano e desconfiança com o voyeurismo à Big Brother.
Ozon se vê como um cineasta-cavaleiro, cuja missão é salvar as mulheres de seus filmes, resgatá-las de suas vidas comme ci, comme ça, suburbanas, infelizes nas aparências de suas casas decoradas de falsa felicidade. Ozon almeja dar uma chance de respiro para elas. Não à toa em geral é uma figura masculina fora da casa que estende a mão: o amor do passado (Gerard Depardieu) em Potiche – Esposa Troféu, o bebê que mergulha Ricky no lúdico ou Claude, o menino-narrador-personagem-alterego que, no fim das contas, quer mesmo é convidar Esther, mãe de seu melhor amigo, a cavalgar num cavalo alado em Dentro da Casa.
Se Jean-Philippe Tessé trabalhou com a ideia na Cahiers du Cinéma de que Amores Imaginários, de Xavier Dolan, é um perfume velho que provoca como primeira sensação a tontura, poderíamos pensar no filme de Ozon como peça banhada em perfume barato, de cheiro forte, daqueles de falsa grife vendidos no centro de São Paulo. Ozon busca abertamente manusear o que é barato, de mau gosto, banhando situações sofisticadas com cheiros de simplicidade – a liberação feminina domada pelas músicas bregas em Potiche, a imaginação da vida privada amaciada pela narração cômica em Dentro da Casa.
Tal manuseio é o que bagunça a classificação de seus filmes. Não são nem a publicidade que os adoradores de Christophe Honoré insistem em chamar de cinema, nem uma comédia rasa como 15 Anos e Meio. Nem é Sessão da Tarde como Minhas Tardes com Margueritte, nem “cinema francês de qualidade” como almeja Claude Miller (Therese D), nem especulação narrativa como Carax.
Talvez Ozon faça mesmo um cinema que se pareça como perfume barato. Banhado em doses esporádicas até dá para usar. Sentido mais de perto, com a constância, o cheiro que excitou no começo transforma-se em irritação no nariz. Inalado com moderação, é possível até ver beleza. Sugado com sofreguidão, intoxica, incomoda e despedaça-se.
segunda-feira, 8 de abril de 2013
É Tudo Verdade - Breves Notas
A situação da Rússia, a julgar pelo retrato documental de Nascido na URSS – Geração de 28, em competição no É Tudo Verdade, está muito pior do que se imaginava. Nas três horas e meia de filme assistimos a dezenas de jovens de etnias distintas, mas que tem em comum a idade: estão com 28 anos, ou seja, tinham sete quando a União Soviética ruiu.
Os personagens foram filmados aos 7, aos 14, aos 21 e agora aos 28. Suas ideias mudam ao longo de cada ciclo, o que é normal. Agora, às portas da maturidade e apesar das diferenças étnicas, as dezenas de personagens pensam muito, mas muito parecido: olham para o passado com uma postura comme ci, comme ça, dizem não entender a liberdade – especialmente a sexual –, não guardam grandes aspirações com o futuro, parecem não enxergar o que se passa para fora dos muros russos.
Não necessariamente uma alienação, mas algo anterior: uma desorientação de quem decorou o que pensar a respeito de um mundo que, repentinamente, sumiu e foi substituído por outro híbrido, contraditório, em que água e óleo aparentemente se misturam. Sentimento que uma personagem ilustrou acidentalmente: “Fico feliz apenas que a Rússia exista”.
Costumo pensar no Brasil como uma tarefa complicada de se explicar. Após assistir a Nascido na URSS – Geração de 28 neste ano, além de ter visto dos os documentários de Marina Goldovskaya (que ganhou retrospectiva em 2011), saio com a sensação de que quanto mais filmes vejo sobre a realidade russa, menos a entendendo.
Constatação que vem acompanhada de outra, bizarra e talvez equivocada: que Vladimir Putin não é acidente de percurso, mas o reflexo de um povo. Se tomarmos o microcosmo de Nascido na URSS – Geração de 28 como parâmetro, a constatação é ainda mais desesperadora: que os russos, desorientados, merecem Putin.
Ozualdo Candeias e o Cinema não tem esse título à toa. Acho positivo como o filme se relaciona com as imagens dos filmes de Candeias com tanta propriedade e, além disso, afirme com veemência que Candeias vem de um lugar com nome, pessoas e dinâmica de socialização: Boca do Lixo.
Por investir basicamente em ricos materiais de arquivo e montagem, o documentário de Eugênio Puppo já demonstra aspirar um pouco mais que a média dos docs “sobre a obra de alguém”. Candeia – sua voz, pois raramente seu corpo é visto – fala, explica, contextualiza e problematiza. Mas o doc não perde de vista algo simples: as imagens feitas por Candeias são muito fortes. Ao vê-las em Ozualdo Candeias e o Cinema penso: deixe-as a falar. Felizmente o filme deixa.
E aí saltam a magnitude do plano, especialmente de A Margem, Meu Nome é Tonho e A Herança. Talvez acidentalmente, talvez propostialmente, o documentário, ao deixar as imagens de Candeias falarem, nos lembra: a imagem cinematográfica está aí para expressar, não para comunicar.
sábado, 6 de abril de 2013
Super Nada e Riscado: corpo morto, corpo resignado
Jair Rodrigues, Marat Descartes e Clarissa Kiste, protagonistas de Super Nada |
Ainda que seja tentador dizer que Super Nada é um primo, um desdobramento, um retrato semelhante a Riscado, equiparar as motivações do filme de Rubens Rewald e Rossana Foglia ao de Gustavo Pizzi é deixar de investir nas sutilezas, detendo-se ao mais acessível de ambas as histórias: o fato de terem como protagonistas atores em busca da grande chance, mas que se viram como podem enquanto a virada na vida é apenas um sonho, miragem distante.
Pois já de cara há a diferença dos protagonistas. Bianca é certamente uma grande atriz, por ora amputada criativamente por um sistema de produção que relega ao relento artistas engajados numa produção mais qualificada. Seria Guto um ator top de linha? Não há certeza. Marat Descartes, que dá corpo e vida ao personagem, é sim um grande ator, mas Guto está cercado, em Super Nada, por uma nuvem de ambiguidades que embaralha os porquês da sua vida ainda mambembe.
No primeiro plano de Super Nada, Guto é apresentado como um corpo morto, anônimo, estirado numa rua movimentada de metrópole. No plano seguinte saberemos se tratar de uma pegadinha boboca de televisão. Para além do efeito esconde-revela, resta a leitura, conforme o filme caminha, de que esse corpo morto representa um homem resignado.
Bianca, por outro lado, é um corpo que resiste. É registrada pela câmera com melancolia nos momentos em que é oprimida (andar pelas ruas do Rio de Janeiro vestida de Alice zumbi distribuindo panfletos de uma festa, sofrer assédio moral quando é contratada para imitar Marilyn Monroe no aniversário de um senhor). Afora as imagens “documentais” quando Bianca encarna algum personagem, há os registros íntimos, afetivos. Em imagens com textura de Super-8 ou digital vagabundo, ela sorri, nos confronta com um olhar desafiador, mira o horizonte (porque há um). Também ensaia – e rouba a cena – para uma peça de dramaturgia aparentemente sofisticada.
Continue lendo o texto na seção Fotogramas da Revista Interlúdio [clique aqui].
quarta-feira, 20 de março de 2013
Breves Notas
-- Super Nada, segundo longa de Rubens Rewald em parceria com Rossana Foglia, é a estreia mais interessante do último fim de semana. Na revisão, o filme cresceu bastante. O principal incômodo quando assisti ao filme na Mostra – a queda no terço final – diluiu-se ao revê-lo. Há um porquê de a crise do personagem Guto não estar no meio do filme, mas no desfecho.
O que mais gosto nessa “comédia depressiva”, roubando a precisa definição de Tales Ab'Saber, é a ambiguidade. Apesar da clareza de algumas situações – a pegada “documental” do circuito teatral off –, Super Nada toma atalhos inesperados e se envereda por provocadoras bifurcações. Ele segue por um caminho, te faz acreditar que o levará a um lugar, mas o aborta.
Exemplo: a natureza dos personagens. Seria Guto um ator de talento, mas injustiçado pela precariedade de recursos? Não tenho certeza. Seria Zeca, o histriônico comediante vivido por Jair Rodrigues, um velhinho boa praça ou um talarico comedor da mulher alheia? Não sei.
Gosto desse não saber que Super Nada deliberadamente procura.
-- A Revista Cinética, um dos endereços necessários para quem se interessa num olhar que se detém mais atenciosamente ao cinema, entrou numa nova fase, como eles explicam no editorial. Mais enxuta, concentrada, agora editada inteiramente por Fábio Andrade.
Da nova edição que acaba de entrar no ar, li dois textos e ambos valem a pena. Um sobre O Som ao Redor [clique aqui e leia], outro é a entrevista com Luc Moullet feita por Francis Vogner dos Reis [clique aqui e leia].
-- Assistir aos longas anteriores de Joachim Lafosse trouxe ainda mais clareza do que me incomoda em Perder a Razão, seu hit na mostra do ano passado: tentar a construção à força de uma atmosfera claustrofóbica (câmera colada que não deixa seus personagens respirar).
Na carreira do belga o centro está nos processos de coerção dentro da família, seja ela de sangue ou dos laços afeitvos improvisados. Em Propriedade Particular, Lafosse não tem agonia em criar um estado. Planta a câmera como observadora privilegiada e deixa o pau comer solto. Em Lições Particulares, vez ou outra senta praça na nuca de seus personagens, mas em geral trabalha com muita inteligência o fora de quadro, aquilo que não se vê e não se diz – este é também seu filme de relações mais ambíguas, em que não há uma consequência final das relações doentias.
Em Perder a Razão, ele abandona a sutileza cinematográfica e tenta se garantir só na meritocracia do soco no estômago, tal como Kim Ki-duk em Pieta, outra estreia desta semana. A cada vez que penso nesse filme do Lafosse me lembro como Claude Chabrol, apenas com os dois primeiros planos de Trágica Separação (La Rupture, 1970) estabeleceu o desconforto, apenas administrando-o no restante do filme, sem alarde.
-- Caverna dos Sonhos Esquecidos, cujo encantamento que provoca no espectador já foi abordado neste post aqui [clique e leia], tornou-se o “blockbuster” entre os filmes de arte deste começo de ano. Exibido exclusivamente no CineSesc, tem me lembrado um pouco das filas para Cópia Fiel, de Kiarostami, no Reserva Cultural.
Herzog dividiu, na semana passada, sessões com Na Neblina, de Sergei Loznitsa. Li a cotação baixa (uma estrela ou bola preta) dada por meus coletas de Revista Interlúdio durante a Mostra e vejo um exagero. Na Felicidade, o filme anterior de Loznitsa, é uma bomba, distante dos bons documentários que ele fez.
Na Neblina é bem filmado e estruturado, ambienta a ação numa floresta, numa situação-limite, e nos faz conhecer os personagens por meio de flashback. E o final é bastante coerente com o restante do filme. Acho que os filmes de Loznitsa e Herzog involuntariamente se complementaram: o segundo fala de um encantamento pelo passado, um desejo de representar, e o outro fala sobre quando nada disso faz mais sentido e a morte é a única saída.
-- A nova edição da Revista Rebeca, publicação da Socine (Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual), entrou no ar. Destaque para a seção Fora de Quadro, que traz um dossiê com seis artigos a respeito do cinema de Carlão Reichenbach.
Clique aqui e leia. Obrigatório.
terça-feira, 19 de março de 2013
O Futuro, de Miranda July, no CineSesc
sexta-feira, 15 de março de 2013
Pieta, de Kim Ki-duk
Pieta, de Kim Ki-duk |
A simples menção ao cinema de Kim Ki-duk desperta humores. Citar seus filmes pregressos – A Ilha, Casa Vazia – é pisar em areia movediça onde se misturam tanto os apaixonados pela “potência do discurso” do coreano quanto os céticos – às vezes raivosos – que dizem “nesse conto eu não caio mais”.
No meio dessa cena “eu já sei o que pensar do Kim Ki-duk” aparece Pietá, uma observação dos limites (ou ausência deles) do amor entre mãe e filho tendo como pano de fundo um comentário sobre o capitalismo. O ambiente é um distrito industrial decadente. Donos de pequenos negócios de metalurgia afogam-se em dívidas com um agiota. Entra em ação o malvado Kang-do para cobrá-las, com a violência que for necessária: amputam-se dedos ou braços, pernas são estraçalhadas, filhos são humilhados na frente de suas mães.
Partindo da representação de Michelangelo do corpo de Jesus nos braços de Maria, o filme constrói sua maneira de registrar os rostos da mãe e do filho. Rostos sempre à espera, em posição de clemência. Esses olhos puros que inspiram piedade – seja de um personagem ou do espectador – tornam-se perturbadores quando o filme investe pesado na ambiguidade da relação de Kang-do, o sanguinário, e Mi-son, a mulher que repentinamente aparece afirmando ser sua mãe.
Continue lendo a crítica de Pieta na Revista Interlúdio.
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