Finalmente Tom Tykwer, o realizador alemão que se mostrou para o mundo em 1998 com Corra, Lola, Corra, volta a fazer um filme interessante. Antes de comentar o que é bom ou ruim no filme, Triângulo Amoroso (3/Drei), lançado nesta sexta-feira (30/12) em São Paulo exclusivamente no CineSesc, pede que tenha sua atenção chamada por ser instigante.
Não há muito o que esconder do enredo já que o próprio título não faz questão de ser discreto quanto à trama. Um típico exemplo da quadrilha drummoniana ou da versão de Chico Buarque em Flor da Idade. Porém, em vez de Carlos, temos Simon; Dora é Hanna; Paulo é Adam.
No mínimo corajoso, num cenário careta do cinema, inverter o mito de Tristão e Isolda para um triângulo amoroso fechado nele mesmo. O elemento externo que entra na vida do casal torna-se corpo orgânico deles, tão orgânico que dá um nó nos próprios personagens. Não são mais os dois homens divididos pelo amor de uma mulher como em Cidade Baixa, mas três pessoas que amam umas às outras.
Corajoso, sim, mas também conciliador. Para justificar o mergulho amoral de seus personagens num amor inédito para eles, Tykwer cria uma trama de aprendizado. Aos 40 e tantos anos, Simon, Hanna e Adam aprendem algo a mais na vida. O primeiro descobre o desejo também por um homem; ela redescobre o prazer do sexo; o terceiro se lembra como é bom amar verdadeiramente.
Tykwer oferece explicações quase que didáticas para seus personagens. Desnecessárias por vezes, penso eu, mas quiçá foi o jeito encontrado para fazer o filme chegar ao seu público e sobreviver com a força do boca a boca.
Assim como busca a conciliação – prefiro a radicalização, mas entendo e respeito a opção de Tykwer –, Triângulo Amoroso também faz algumas escolhas certas. Em geral, perceptíveis no tom do filme e no destino do trio. Em vez de adotar a postura do julgamento e condenação moral, ele decide andar junto e pisar a mesma areia de seus personagens, respeitando suas motivações e verdades.
Há outro detalhe do filme que me sinto obrigado a ressaltar: o ritmo. Em Triângulo Amoroso, talvez nem fosse preciso ler os créditos para descobrir quem dirigiu o filme. Há nele uma composição de ritmo dinâmica, mas não frenética, de divisão múltipla da tela para dar conta de vários acontecimentos ao mesmo tempo. Tykwer voltou a trabalhar com Mathilde Bonnefoy, montadora de todos os seus filmes, exceto Perfume – A História de um Assassino. Que bom!
Fico feliz também que, às vésperas do ano novo, a sala de 300 lugares do CineSesc estivesse ocupada e com fila já para a próxima sessão. Triângulo Amoroso não é um exemplo de ruptura rumo a outra ordem comportamental, mas não deixa de fazer dois ou três bem-vindos questionamentos sobre o estado das coisas.
Ficha técnica
Triângulo Amoroso (3/Drei), 2010
Avaliação: 3,5 de 5
Direção: Tom Tykwer
Distribuição: Lume Filmes
Estúdio: X-Filme Creative Pool
Veja aqui os horários da exibição no cinema
sexta-feira, 30 de dezembro de 2011
segunda-feira, 26 de dezembro de 2011
Melhores Filmes do Ano
Chega o fim de ano e pipocam as listas com os melhores filmes de 2011. O editor deste Urso de Lata oferece uma contribuição com três relações diferentes - Longas Nacionais, Longas Estrangeiros e Curtas-metragens.
Aí vão os Top 10 com breves justificativas. Nunca é demais lembrar que, no caso de longas, entram na lista apenas os filmes que estrearam no circuito – produções exibidas apenas em festivais ficam de fora.
No caso dos curtas-metragens, o critério é diferente, já que não existe um circuito comercial exibidor sólido para o formato. Assim sendo, entram os filmes projetados em festivais e se tornam elegíveis os que assisti no ano corrente.
O Urso de Lata gostaria de ressaltar também a importância do projeto Sessão Vitrine para a criação de uma janela de exibição para filmes independentes brasileiros. Graças a ela, foi possível que o público assistisse a alguns dos longas que constituem a lista deste blog de melhores do ano.
Fim do blá blá blá. Às listas:
Filme do Ano
A Árvore da Vida, de Terrence Malick
Top 10 – Melhores Nacionais
Os Monstros
Dos mesmos diretores de Estrada Para Ythaca. A diferença é que eles reduziram a gana por citações explícitas e acreditaram mais no próprio filme. O resultado está nas cenas eletrizantes e poéticas.
Leia a crítica
Trabalhar Cansa
Filme de gênero muito particular na cinematografia brasileira e uma estreia corajosa de uma dupla bem sucedida no curta-metragem, Juliana Rojas e Marco Dutra.
Leia a crítica
Estrada para Ythaca
Grande exemplar do cinema etílico, essa história de amigos faz do possível um belo filme sobre luto, amizade e cinema.
Leia a crítica
Riscado
Filme de aparente superficialidade mas cheio de camadas aguardando o espectador penetrá-las.
Leia a crítica
Assim é, Se lhe Parece
A diretor Carla Gallo mostra que apenas com as ferramentas do cinema – uso criativo do som e da montagem – é possível construir um retrato documental que foge do óbvio.
Leia a crítica
Diário de Uma Busca
Íntimo, mas não egoico, acha as saídas certas entre o pai idealizado e o homem que está na História.
Leia a crítica
O Palhaço
Com uma encenação interessante, Selton Mello encontra uma possível via do cinema que se pretende inteligível, mas não subestima o espectador.
Leia a crítica
Transeunte
Mesmo se alongando um pouco na parte final, o filme é puro cinema.
Leia a crítica
Pacific
Um documentário que, com muito pouco – imagens amadoras de um cruzeiro –, consegue questionar a realização cinematográfica.
Leia a crítica
Bróder
Obrigatório de ser assistido, o filme de Jeferson De toca com bem-vinda agressividade na questão racial – pena que o longa tem problemas de ritmo.
Leia a crítica
Top 10 – Melhores Internacionais
A Árvore da Vida
A experiência mais marcante que tive no cinema neste ano
Leia a crítica
Cópia Fiel
Por trás da aparente simplicidade – história do casal de meia idade – está um filme complexo em que não se sabe onde começa, onde está o meio e onde termina.
Leia a crítica
Tio Boonmee, que Pode Recordar suas Vidas Passadas
Apichatpong nos proporciona um filme-colírio, inesperado, imprevisível, de química muito distante dos componentes aos quais estamos acostumados.
Leia a crítica
Singularidades de uma Rapariga Loura
Filme menor de Manoel de Oliveira, é verdade, mas nosso grande velhinho tem uma noção absurda de encenação.
Leia a crítica
Isto Não é Um Filme
Impedido de filmar, Jafar Panahí faz... um filme!
Leia a crítica
O Mágico
Música e gags para um personagem inspirado no Monsieur Hulot de Jacques Tati. A melancolia da passagem dos anos.
Leia a crítica
O Vencedor
Muito subestimado, esse filme de David O Russell é porrada!
Leia a crítica
Potiche – Esposa Troféu
François Ozon obviamente não é um Jacques Demy, mas sua brincadeira cinematográfica me fez lembrar do mestre: Deneuve cantando na cozinha me jogou para Pele de Asno.
Leia a crítica
Gainsbourg – O Homem que Amava as Mulheres
Animação e licença poética, ótima combinação para reverenciar e entrar no universo de Serge e seu alter-ego, Gainsbarre.
Leia a crítica
Meia-noite em Paris
Woody Allen se recupera do apático filme anterior e nos dá um filme-homenagem em que até Owen Wilson está bem!
Leia a crítica
Top 10 – Melhores Curtas-metragens
Praça Walt Disney, de Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira
Comentário político-poético-musical sobre a cidade que se torna cada vez mais burguesa.
Leia a crítica
Mens Sana in Corpore Sano, de Juliano Dorneles
Um filme de mutação genética que é político em sua crítica! Grande salada de gêneros!
Leia a crítica
Tela, de Carlos Nader
O cinema que questiona a si próprio e ao espectador.
Oma, de Michael Wahrmann
Transporta toda a melancolia do assunto para o tratamento estético.
Ovos de Dinossauro na Sala de Estar, de Rafael Urban
O documentário parece ilimitado nas suas abordagens e este curta mostra isso.
Calma Monga, Calma!, de Petrônio de Lorena
Cinema cômico-popular-policial com muito vigor e humor.
Céu, Inferno e Outras Partes do Corpo, de Rodrigo John
Animação fofinha que nada!
Zeit to the Geist, de Diogo Faggiano
Uma colocação diferente do que costumamos entender por cinema político.
Leia a crítica
Uma Primavera, de Gabriela Amaral de Almeida
Cinema bem feito e bem dirigido para um tema comum: tornar-se adulto.
Pra eu Dormir Tranquilo, de Juliana Rojas
Nova ida ao cinema de horror para falar do cotidiano.
sexta-feira, 16 de dezembro de 2011
Indicados ao Globo de Ouro (e férias)
O editor do Urso de Lata justifica a falta de atualização durante a semana: férias! (apesar de a parafernália digital não nos permitir alienação total).
Com isso, as atualizações deverão acontecer só no finalzinho do ano com a lista dos Melhores de 2011 (longas e curtas). Antes do descanso, porém, alguns brevíssimos comentários , restritos às categorias de cinema, sobre os indicados ao Globo de Ouro, anunciados na quinta-feira (15):
-- Interessante a entrada de Hugo como postulante a Melhor Filme - Drama. É a primeira incursão de Scorsese no 3D, o que tem gerado muitas expectativas.
-- Ficaram de fora J. Edgar e Drive. Uma pena, especialmente pelo segundo, mas não me surpreendeu. O que não esperava era Millenium - O Homem que Não Amava as Mulheres, adaptação de David Fincher para os livros do sueco Stieg Larsson, ficasse de fora da categoria principal.
-- Filme muito bom, mas pequeno, é sempre a mesma coisa: indicações isoladas. Desta vez foram Precisamos Falar Sobre Kevin, lembrado apenas pela atuação de Tilda Swinton, e Toda Forma de Amor (Beginners), que deu indicação a Christopher Plummer.
-- The Artist, o filme que celebra um passado que não volta -- os anos 20 no cinema --, recebeu cinco indicações. Ainda não assisti ao longa, mas tenho dúvidas quanto ao tom de homenagem a um cinema mais artesanal. Me parece que, além de jogar louros nele, é preciso denfendê-lo no presente, caso realmente se acredite nele. Mas ainda não vi o filme, então melhor ficar quieto.
-- A categoria Melhor Filme em Língua Estrangeira me parece a mais cheia de buracos neste ano. Dos cinco indicados, assisti a três: A Pele que Habito (Almodóvar), A Separação (Jodái-e Náder az Simin, que foi Urso de Ouro no Festival de Berlim, e O Garoto da Bicicleta (Irmãos Dardenne). Acho o Almodóvar muito fraco, o representante iraniano bom e o filme dos fratelli belgas médio.
Falta assistir aos outros dois indicados: In the Land of Blood and Honey, longa que Angelina Jolie dirigiu na Bósnia, e As Flores da Guerra, de Zang Yimou (cujo recente A Árvore do Amor é mediano). Deixar de fora o filmaço Era uma Vez na Anatólia, de Nuri Bilge Ceilan, que a crítica premiou na Mostra SP, é um baita equívoco. Attenberg (Grécia) e Respirar (Atmen, Áustria) também são ótimos filmes que, para mim, poderiam substituir facilmente um Almodóvar ou um Dardenne -- que já fizeram filmes bem melhores que os indicados.
-- Muito bem vinda a lembrança da Associação de Correspondentes Estrangeiros de Hollywood de indicar Viggo Mortensen como Ator Coadjuvante em Um Método Perigoso, de Cronenberg. O filme não é um dos melhores do diretor, mas o trabalho de atuação de Mortensen, Fassbender e Keira Knightley é muito bom.
Com isso, as atualizações deverão acontecer só no finalzinho do ano com a lista dos Melhores de 2011 (longas e curtas). Antes do descanso, porém, alguns brevíssimos comentários , restritos às categorias de cinema, sobre os indicados ao Globo de Ouro, anunciados na quinta-feira (15):
-- Interessante a entrada de Hugo como postulante a Melhor Filme - Drama. É a primeira incursão de Scorsese no 3D, o que tem gerado muitas expectativas.
-- Ficaram de fora J. Edgar e Drive. Uma pena, especialmente pelo segundo, mas não me surpreendeu. O que não esperava era Millenium - O Homem que Não Amava as Mulheres, adaptação de David Fincher para os livros do sueco Stieg Larsson, ficasse de fora da categoria principal.
-- Filme muito bom, mas pequeno, é sempre a mesma coisa: indicações isoladas. Desta vez foram Precisamos Falar Sobre Kevin, lembrado apenas pela atuação de Tilda Swinton, e Toda Forma de Amor (Beginners), que deu indicação a Christopher Plummer.
-- The Artist, o filme que celebra um passado que não volta -- os anos 20 no cinema --, recebeu cinco indicações. Ainda não assisti ao longa, mas tenho dúvidas quanto ao tom de homenagem a um cinema mais artesanal. Me parece que, além de jogar louros nele, é preciso denfendê-lo no presente, caso realmente se acredite nele. Mas ainda não vi o filme, então melhor ficar quieto.
-- A categoria Melhor Filme em Língua Estrangeira me parece a mais cheia de buracos neste ano. Dos cinco indicados, assisti a três: A Pele que Habito (Almodóvar), A Separação (Jodái-e Náder az Simin, que foi Urso de Ouro no Festival de Berlim, e O Garoto da Bicicleta (Irmãos Dardenne). Acho o Almodóvar muito fraco, o representante iraniano bom e o filme dos fratelli belgas médio.
Falta assistir aos outros dois indicados: In the Land of Blood and Honey, longa que Angelina Jolie dirigiu na Bósnia, e As Flores da Guerra, de Zang Yimou (cujo recente A Árvore do Amor é mediano). Deixar de fora o filmaço Era uma Vez na Anatólia, de Nuri Bilge Ceilan, que a crítica premiou na Mostra SP, é um baita equívoco. Attenberg (Grécia) e Respirar (Atmen, Áustria) também são ótimos filmes que, para mim, poderiam substituir facilmente um Almodóvar ou um Dardenne -- que já fizeram filmes bem melhores que os indicados.
-- Muito bem vinda a lembrança da Associação de Correspondentes Estrangeiros de Hollywood de indicar Viggo Mortensen como Ator Coadjuvante em Um Método Perigoso, de Cronenberg. O filme não é um dos melhores do diretor, mas o trabalho de atuação de Mortensen, Fassbender e Keira Knightley é muito bom.
sábado, 10 de dezembro de 2011
Precisamos do cinema de Marina Goldovskaya
Para compreender os protestos deste fim de semana na Rússia contra Vladimir Putin e as fraudes nas eleições do Parlamento, é preciso voltar uma vez mais ao cinema de Marina Goldovskaya, cuja obra foi homenageada em abril de 2011 no É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários.
A câmera de Marina – hoje uma senhora de 70 anos – registrou a transição da União Soviética ao formato atual da Rússia e os países independentes. Enquanto a História era feita, seu cinema estava lá para acompanhar.
Ouvindo sobre as 15 mil pessoas que foram às ruas, após anos de paralisia, para dizer que estavam cansadas – uma “bandeira” da apática classe média russa –, lembro de Um Gosto da Liberdade, filme que Marina fez em 1991 registrando as esperanças e a tensão de quem saiu para protestar ou apoiar logo após o fim do bloco Soviético.
Hoje, o cenário mudou. Não se sabe se os protestos – 5 mil pessoas na segunda-feira (5/12), 15 mil neste sábado (10) – manterão o fôlego como naquele momento acompanhado pelo cinema de Marina. Também não há uma centralização em torno de um partido político ou com bases em movimentos sociais.
A esmagadora maioria da classe média inoperante que desta vez saiu às ruas segue um blogueiro/twitteiro, Alexei Navalny. Mas nem o que o ativista pensa está muito claro: posiciona-se a favor da democracia, contra as repressões de Putin, mas é ultranacionalista – como lembra esta matéria publicada no The New York Times.
É preciso que Marina Goldovskaya faça mais um, e outro, e outro filme para que tenhamos a compreensão se esse momento da Rússia representa mesmo algo especial: que lugar é esse que 15 mil pessoas vão às ruas reclamarem de Putin, figura que goza de mais de 60% de popularidade na Rússia?
Há mesmo o anseio de mudança? O que as mídias sociais podem representar em termos de aglutinação e militância? Qual é a outra via sem Putin? Se os protestos se tornarem maiores, como os defensores dele e a máquina estatal vão reagir?
São questões que precisam muito do cinema de Marina Goldovskaya para serem respondidas.
Em tempo: neste link do blog The Ledge, do The New York Times, é possível acompanhar atualizações constantes dos protestos na Rússia.
Em tempo2: neste link em streaming, veja vídeos dos protestos e das ruas ocupadas.
A câmera de Marina – hoje uma senhora de 70 anos – registrou a transição da União Soviética ao formato atual da Rússia e os países independentes. Enquanto a História era feita, seu cinema estava lá para acompanhar.
Ouvindo sobre as 15 mil pessoas que foram às ruas, após anos de paralisia, para dizer que estavam cansadas – uma “bandeira” da apática classe média russa –, lembro de Um Gosto da Liberdade, filme que Marina fez em 1991 registrando as esperanças e a tensão de quem saiu para protestar ou apoiar logo após o fim do bloco Soviético.
Hoje, o cenário mudou. Não se sabe se os protestos – 5 mil pessoas na segunda-feira (5/12), 15 mil neste sábado (10) – manterão o fôlego como naquele momento acompanhado pelo cinema de Marina. Também não há uma centralização em torno de um partido político ou com bases em movimentos sociais.
A esmagadora maioria da classe média inoperante que desta vez saiu às ruas segue um blogueiro/twitteiro, Alexei Navalny. Mas nem o que o ativista pensa está muito claro: posiciona-se a favor da democracia, contra as repressões de Putin, mas é ultranacionalista – como lembra esta matéria publicada no The New York Times.
É preciso que Marina Goldovskaya faça mais um, e outro, e outro filme para que tenhamos a compreensão se esse momento da Rússia representa mesmo algo especial: que lugar é esse que 15 mil pessoas vão às ruas reclamarem de Putin, figura que goza de mais de 60% de popularidade na Rússia?
Há mesmo o anseio de mudança? O que as mídias sociais podem representar em termos de aglutinação e militância? Qual é a outra via sem Putin? Se os protestos se tornarem maiores, como os defensores dele e a máquina estatal vão reagir?
São questões que precisam muito do cinema de Marina Goldovskaya para serem respondidas.
Em tempo: neste link do blog The Ledge, do The New York Times, é possível acompanhar atualizações constantes dos protestos na Rússia.
Em tempo2: neste link em streaming, veja vídeos dos protestos e das ruas ocupadas.
sexta-feira, 9 de dezembro de 2011
Táxi Driver, clássico de Scorsese com De Niro, reestreia no Cine Olido
Táxi Driver (1976), clássico de Martin Scorsese que deu a Robert De Niro um dos mais interessantes papeis de sua carreira, reestreia nesta sexta-feira (9/11) exclusivamente no Cine Olido, em São Paulo. A cópia restaurada, previamente exibida no Festival de Berlim e na Mostra de São Paulo, integra o projeto Em Cartaz no Cine Olido – ingressos a R$ 1.
O filme é um dos grandes documentos do mal estar na sociedade norte-americana pós-Guerra do Vietnã (1959-75). Travis Bickle, o protagonista cuja paranoia fica mais intensa nas cores da cópia restaurada a ser exibida no Olido, é um pequeno comentário de um período de incertezas. Reflete também o breve momento em que o modelo de produção de Hollywood, então em crise, deu espaço a uma outra geração que fez filmes radicais dentro do sistema – e por ele foi engolido no fim da década.
Travis não dorme, não tem amigos, família ou companheira. Nas vésperas das eleições presidenciais, desconhece o que significa Republicanos ou Democratas. Veterano de guerra, volta para a vida civil sem a menor compreensão do termo “vida civil”. Desequilibrado, Travis quer “limpar toda a sujeira e o fedor de Nova York”. No seu táxi, encontra toda a sorte de gente: maníacos, maridos traídos, ricaços com prostitutas, políticos...
Taxi Driver é um documento porque registra precisamente o mal estar de uma sociedade. Um momento de incertezas nos Estados Unidos, de seu Exército foi derrotado em Saigon, e do inoperante presidente boa-praça do momento, Jimmy Carter. No filme, vive-se a apreensão das prévias eleitorais – Charles Palantine, o candidato, não deixa de ser uma citação ao bom-mocismo de Carter, que se tornaria presidente em 1977.
Talvez o melhor exemplo do desequilíbrio de Travis esteja na trilha de Bernard Herrmann, o compositor favorito de Hitchcock. A trilha vai do romântico/idílico ao sombrio/soturno num instante. Uma mudança tão brusca como a ajeitada de Travis no retrovisor na sequência final, indicando que depois da calmaria haverá outra tormenta.
Documento de época, sim, mas também atualíssimo, por conseguir ser a representação do desconforto. São nos momentos de insegurança e indefinições que tipos escondidos na gaiola como Travis vêm à superfície. O discurso do maluco de Realengo, que matou doze pessoas em abril dentro de uma escola, é tão confuso quanto a “limpeza” que Travis propõe como a salvação de Nova York.
Taxi Driver é uma obra-prima atemporal, que vai continuar fazendo sentido por muitas outras gerações. Só é difícil alimentar esperanças de que, dentro de Hollywood, surja um filme como esse, que se transforma, no final, numa grande sinfonia da morte e da falta de sentido humano. Os tempos de Nova Hollywood, da geração que arrebentou portas, mas depois foi engolida, se foram.
Serviço
Projeto Em Cartaz no Cine Olido
Reestreia de Táxi Driver
De 09 a 15/12
Sexta, sábado, terça, quarta e quinta-feira às 19h30
Domingo às 17h30
Segunda-feira, dia 12/12, não haverá sessão
Valor do Ingresso: Inteira: R$1 / MEIA-ENTRADA: R$0,50
Compra do ingresso somente na Galeria Olido, de Terça a Domingo das 14h às 21h na semana do filme
Galeria Olido: Avenida São João, 473
Em tempo: leia a íntegra do roteiro escrito por Paul Schrader neste link.
quarta-feira, 7 de dezembro de 2011
Clint Eastwood e Dirty Harry: um personagem cool?
Existe um movimento comum de fuga do presente e um saudosismo com um passado inocentemente associado à infância ou a uma ilusão de que “quando tudo era bom”. Desse sentimento surgem filmes-homenagens de um tempo que não volta – do qual Super 8, o melhor blockbuster americano do ano, é o principal exemplo. Se fosse só isso, estaríamos bem. Existe mais um desdobramento que considero daninho: uma negação de se posicionar como sujeito na produção contemporânea, em qualquer das artes, e como ela reflete nossos valores.
Porém, contrapor algo bom do passado que, devido ao estado das coisas do presente, será difícil acontecer é um movimento válido justamente para se olhar com perspectiva crítica o hoje. Falo disso para chegar à mostra Clint Eastwood – Clássico e Implacável, que o Centro Cultural Banco do Brasil abriga em São Paulo até 30 de dezembro [programação completa aqui].
No extenso escopo da mostra, cuja curadoria é de Gisella Cardoso, puxo um exemplo de Clint como ator, mas que também seria reverberado no Clint diretor. Falo do investigador Harry Callahan, o Dirty Harry, típico exemplo de justiceiro, na primeira produção da franquia, de 1971, no Brasil lançada como Perseguidor Implacável.
A cultura pop tem o poder de esvaziar o que há de crítica em personagens do cinema. As novas gerações que acompanharam Diry Harry com uma certa distância ou se acostumando a encontrar o policial com sua Magnum 44, cara de malvado, em fotos do Google Image ou estampa de camiseta pode não ter percebido que existe ali um herói dividido, com problemas e consciente de como tudo vai mal.
Perseguidor Implacável não é um filme cool como por vezes é vendido, mas sim pessimista. Duro. Melancólico. Sim, tudo “dá certo” no final, mas o preço que Harry, o justiceiro solitário em sua meio às avessas por justiça, é altíssimo: ele mergulha numa lama que não mais conseguirá sair. É isso o que diz o gesto dele de, após fazer o que devia ser feito, jogar o distintivo de investigador da Polícia de San Francisco no rio.
Num momento do filme, ele conversa com a esposa de seu parceiro de polícia ferido, Chico. Ela o questiona por que não larga a corporação, ao que Harry rseponde “não sei”. Ele pode não saber, mas nós sabemos: Harry já está mais pra lá do que pra cá, o dano já foi feito.
Porém, tenho a sensação de que existe um costume de colocar Dirty Harry e Stallone Cobra no mesmo balaio. Erro fatal. É preciso continuar pontuando que eles não são a mesma coisa, ao menos o Harry Callahan do primeiro filme. Mas a cultura pop esvazia e vende apenas os bordões, sejam um “pede pra sair!” do Capitão Nascimento ou um “Go ahead, make my day” de Harry Callahan.
Esse final de perseguidor implacável é um exemplo do quão especial foi o começo dos anos 1970 em Hollywood. Num momento em que um modelo de negócios (os grandes estúdios que controlavam a cadeia da produção à exibição até os anos 1950) enfraquece, uma nova geração, aquela conhecida como Nova Hollywood (Scorsese, Coppola, Ashby, Polanski etc) entra por um buraco que é aproveitado por outros filmes.
Claro que não coloco Perseguidor Implacável no mesmo nível de um Táxi Driver, não é isso, mas sim apontar, sem saudosismo, mas com observação crítica, que aquele momento do cinema norte-americano permitiu o surgimento de filmes que talvez não existiriam antes.
Hoje, certamente não existem. Qual é a chance de, com os orçamentos monstruosos, verbas absurdas de publicidade e estúdios controlados por business men, surgirem filmes como Perseguidor Implacável dentro da produção de uma indústria? Qual é a chance de num filme policial com várias sequências de aventura e perseguição de ter a quantidade de planos maravilhosos do longa de Don Siegel – especialmente os com zoom ou a cena do Kezar Stadium – ou até mesmo o pessimismo da sequência final?
As chances são poucas.
Porém, contrapor algo bom do passado que, devido ao estado das coisas do presente, será difícil acontecer é um movimento válido justamente para se olhar com perspectiva crítica o hoje. Falo disso para chegar à mostra Clint Eastwood – Clássico e Implacável, que o Centro Cultural Banco do Brasil abriga em São Paulo até 30 de dezembro [programação completa aqui].
No extenso escopo da mostra, cuja curadoria é de Gisella Cardoso, puxo um exemplo de Clint como ator, mas que também seria reverberado no Clint diretor. Falo do investigador Harry Callahan, o Dirty Harry, típico exemplo de justiceiro, na primeira produção da franquia, de 1971, no Brasil lançada como Perseguidor Implacável.
A cultura pop tem o poder de esvaziar o que há de crítica em personagens do cinema. As novas gerações que acompanharam Diry Harry com uma certa distância ou se acostumando a encontrar o policial com sua Magnum 44, cara de malvado, em fotos do Google Image ou estampa de camiseta pode não ter percebido que existe ali um herói dividido, com problemas e consciente de como tudo vai mal.
Perseguidor Implacável não é um filme cool como por vezes é vendido, mas sim pessimista. Duro. Melancólico. Sim, tudo “dá certo” no final, mas o preço que Harry, o justiceiro solitário em sua meio às avessas por justiça, é altíssimo: ele mergulha numa lama que não mais conseguirá sair. É isso o que diz o gesto dele de, após fazer o que devia ser feito, jogar o distintivo de investigador da Polícia de San Francisco no rio.
Num momento do filme, ele conversa com a esposa de seu parceiro de polícia ferido, Chico. Ela o questiona por que não larga a corporação, ao que Harry rseponde “não sei”. Ele pode não saber, mas nós sabemos: Harry já está mais pra lá do que pra cá, o dano já foi feito.
Porém, tenho a sensação de que existe um costume de colocar Dirty Harry e Stallone Cobra no mesmo balaio. Erro fatal. É preciso continuar pontuando que eles não são a mesma coisa, ao menos o Harry Callahan do primeiro filme. Mas a cultura pop esvazia e vende apenas os bordões, sejam um “pede pra sair!” do Capitão Nascimento ou um “Go ahead, make my day” de Harry Callahan.
Esse final de perseguidor implacável é um exemplo do quão especial foi o começo dos anos 1970 em Hollywood. Num momento em que um modelo de negócios (os grandes estúdios que controlavam a cadeia da produção à exibição até os anos 1950) enfraquece, uma nova geração, aquela conhecida como Nova Hollywood (Scorsese, Coppola, Ashby, Polanski etc) entra por um buraco que é aproveitado por outros filmes.
Claro que não coloco Perseguidor Implacável no mesmo nível de um Táxi Driver, não é isso, mas sim apontar, sem saudosismo, mas com observação crítica, que aquele momento do cinema norte-americano permitiu o surgimento de filmes que talvez não existiriam antes.
Hoje, certamente não existem. Qual é a chance de, com os orçamentos monstruosos, verbas absurdas de publicidade e estúdios controlados por business men, surgirem filmes como Perseguidor Implacável dentro da produção de uma indústria? Qual é a chance de num filme policial com várias sequências de aventura e perseguição de ter a quantidade de planos maravilhosos do longa de Don Siegel – especialmente os com zoom ou a cena do Kezar Stadium – ou até mesmo o pessimismo da sequência final?
As chances são poucas.
terça-feira, 6 de dezembro de 2011
Gato de Botas - Crítica
É tolice procurar por qualquer traço de autoria em Gato de Botas, um filme cuja perfeição técnica e esterilidade narrativa o colocam como um típico produto de fábrica. O spin-off da franquia Shrek, que estreia nesta sexta-feira (9/12) e é inspirado numa fábula francesa do Século 17, tem intenções muito claras.
Sabemos que produzir hoje em Hollywood significa colocar milhões em propaganda, aproveitar o potencial que mercados emergentes (como o Brasil) representam especialmente para o consumo de 3D e recuperar dinheiro com licenciamento da marca.
Numa engenhoca financeira dessas, o filme de indústria, aquele que está comprometido em cobrir o orçamento e dar lucro, toma cada vez menos riscos. Tudo é dado mastigadinho para o espectador não perder nada da trama entre uma saída ao banheiro ou para comprar pipoca, uma twittada no celular...
Gato de Botas começa tratando o espectador como alguém com minúscula idade mental. Já de cara duas cenas repletas de diálogos para contar o porquê de o galanteador herói felino ter se tornado um forasteiro que busca recuperar sua honra. Fala-se, e muito. Depois de tanto parlar, ação, aventura, movimento, rapidez.
Quando o filme engata – o que acontece dado o carisma de um gato de sotaque paraguaio, destemido e honrado –, puxa-se novamente o freio de mão. Um flashback irritantemente óbvio vem novamente (re) explicar o que se passou. Por que não diluir a revelação do passado do Gato? Por que não deixar o espectador descobrir aos poucos a desconfiança dele com Humpty, seu amigo duas caras?
Parque de diversões
Num filme visualmente deslumbrante como Gato de Botas, é uma pena que não haja espaço para descobertas, dúvidas, incertezas. É como uma ida ao parque de diversões, em que o consumidor senta-se na cadeira e a parafernália remexe, vira, rebola, chacoalha, mas devolve o consumidor são e salvo no final, no chão.
No meio do caminho, o máximo que ele tem de fazer é berrar: esse é o entretenimento. E é assim que um filme como Gato de Botas espera que seu público se comporte: como uma ida ao parque de diversões, em que se senta e a bugiganga à sua frente faz todo o trabalho.
Nisso, o filme novo da DreamWorks Annimation SKG é igualzinho à produção anterior, Kung Fu Panda 2. Basta reparar nas situações comuns aos dois roteiros: uma uma sequência de dança, duas ou mais longas sequências de perseguição, tiradas cômicas, heroína que abandona o filme para deixar o herói reinar, mas volta num momento crucial e salva sua pele, uma jornada moralista etc.
A semelhança não é por falta de criatividade dos roteiristas e produtores de Gato de Botas, mas sim da escolha deliberada em oferecer um produto igual aos outros. Oferecer uma paralisante segurança ao espectador: ele vai ao cinema e já sabe o que irá encontrar, sem risco algum de ser desafiado durante o filme.
Reflexo desse momento conservador da indústria: investe-se apenas no que já tem potencial de dar certo financeiramente (já que Gato de Botas herda de bandeja os fãs da franquia Shrek). E na feitura do filme, não se toma risco algum.
Mas onde fica o prazer em descobrir aos poucos o filme que se vê? Uma animação como Gato de Botas não deixa o menor espaço para ser descoberta, pois tudo é dado de bandeja.
Por isso que, da safra recente, destacam-se tanto Como Treinar Seu Dragão e Toy Story 3: são animações que não tratam seu público como incapacitado em se aventurar. O curioso é que Dragão também é produção da DreamWorks e não deixa de trabalhar em cima de arquétipos há muito estabelecidos (o peixe fora d'água).
Talvez a grande diferença entre ambas as produções é que naquela há uma encenação que prioriza o humanismo dos personagens – seja ele um garoto ou um dragão. Em Gato de Botas, porém, dá-se vazão a um moralismo raso.
Ficha técnica
Gato de Botas (Puss in Boots), 2011
Avaliação: 2,5 de 5
Direção: Chris Miller
Estúdio: DreamWorks Annimation SKG
Sabemos que produzir hoje em Hollywood significa colocar milhões em propaganda, aproveitar o potencial que mercados emergentes (como o Brasil) representam especialmente para o consumo de 3D e recuperar dinheiro com licenciamento da marca.
Numa engenhoca financeira dessas, o filme de indústria, aquele que está comprometido em cobrir o orçamento e dar lucro, toma cada vez menos riscos. Tudo é dado mastigadinho para o espectador não perder nada da trama entre uma saída ao banheiro ou para comprar pipoca, uma twittada no celular...
Gato de Botas começa tratando o espectador como alguém com minúscula idade mental. Já de cara duas cenas repletas de diálogos para contar o porquê de o galanteador herói felino ter se tornado um forasteiro que busca recuperar sua honra. Fala-se, e muito. Depois de tanto parlar, ação, aventura, movimento, rapidez.
Quando o filme engata – o que acontece dado o carisma de um gato de sotaque paraguaio, destemido e honrado –, puxa-se novamente o freio de mão. Um flashback irritantemente óbvio vem novamente (re) explicar o que se passou. Por que não diluir a revelação do passado do Gato? Por que não deixar o espectador descobrir aos poucos a desconfiança dele com Humpty, seu amigo duas caras?
Parque de diversões
Num filme visualmente deslumbrante como Gato de Botas, é uma pena que não haja espaço para descobertas, dúvidas, incertezas. É como uma ida ao parque de diversões, em que o consumidor senta-se na cadeira e a parafernália remexe, vira, rebola, chacoalha, mas devolve o consumidor são e salvo no final, no chão.
No meio do caminho, o máximo que ele tem de fazer é berrar: esse é o entretenimento. E é assim que um filme como Gato de Botas espera que seu público se comporte: como uma ida ao parque de diversões, em que se senta e a bugiganga à sua frente faz todo o trabalho.
Nisso, o filme novo da DreamWorks Annimation SKG é igualzinho à produção anterior, Kung Fu Panda 2. Basta reparar nas situações comuns aos dois roteiros: uma uma sequência de dança, duas ou mais longas sequências de perseguição, tiradas cômicas, heroína que abandona o filme para deixar o herói reinar, mas volta num momento crucial e salva sua pele, uma jornada moralista etc.
A semelhança não é por falta de criatividade dos roteiristas e produtores de Gato de Botas, mas sim da escolha deliberada em oferecer um produto igual aos outros. Oferecer uma paralisante segurança ao espectador: ele vai ao cinema e já sabe o que irá encontrar, sem risco algum de ser desafiado durante o filme.
Reflexo desse momento conservador da indústria: investe-se apenas no que já tem potencial de dar certo financeiramente (já que Gato de Botas herda de bandeja os fãs da franquia Shrek). E na feitura do filme, não se toma risco algum.
Mas onde fica o prazer em descobrir aos poucos o filme que se vê? Uma animação como Gato de Botas não deixa o menor espaço para ser descoberta, pois tudo é dado de bandeja.
Por isso que, da safra recente, destacam-se tanto Como Treinar Seu Dragão e Toy Story 3: são animações que não tratam seu público como incapacitado em se aventurar. O curioso é que Dragão também é produção da DreamWorks e não deixa de trabalhar em cima de arquétipos há muito estabelecidos (o peixe fora d'água).
Talvez a grande diferença entre ambas as produções é que naquela há uma encenação que prioriza o humanismo dos personagens – seja ele um garoto ou um dragão. Em Gato de Botas, porém, dá-se vazão a um moralismo raso.
Ficha técnica
Gato de Botas (Puss in Boots), 2011
Avaliação: 2,5 de 5
Direção: Chris Miller
Estúdio: DreamWorks Annimation SKG
domingo, 4 de dezembro de 2011
Sócrates (1954-2011)
Sem Sócrates, que morreu na madrugada deste domingo (4/12), o mundo fica mais boçal.
Como ex-jogador, uma rara voz que valia realmente a pena ouvir.
Como jogador, uma sintonia perfeita com o que há de lúdico no futebol.
Ver Sócrates falando ou jogando era ter a esperança de que acreditar na beleza, não na burocracia, valeria a pena.
Qualquer artesão do cinema, se tivesse sua narrativa transformada em futebol, seria assim:
Ou assim, como no primeiro gol contra a Itália na Copa de 82:
quarta-feira, 30 de novembro de 2011
Alexandre Desplat: o compositor mais quente de cinema nos EUA
Por quatro vezes o compositor francês Alexandre Desplat passou perto de abocanhar uma estatueta do Oscar como compositor. Em 2008, seu trabalho em A Rainha perdeu para Gustavo Santaloalla em Babel. Em 2009, foi um dos 13 indicados de O Curioso Caso de Benjamin Button a sair de mãos abanando – perdeu para A.R. Rahman, de Quem Quer Ser um Milionário?.
Em 2010, suas músicas para O Fantástico Sr. Raposo perderam para o carisma de Up – Altas Aventuras. Em 2011, nem a vitória de O Discurso do Rei nas quatro principais categorias ajudou a Desplat levar a sua também.
Para a edição de 2012 do Oscar, os trabalhos em A Árvore da Vida, de Terrence Malick, e Harry Potter e as Relíquias da Morte colocam o músico de 50 anos como provável indicado à premiação da Academia. “Nunca se sabe, pois o Oscar pode ser um ser um senhor cheio de humores”, brincou em entrevista ao Cineclick. Desplat está no Brasil para apresentar alguns de seus trabalhos para o cinema como regente da Jazz Sinfônica. O evento acontece no Sesc Pinheiros, em São Paulo, às 21h.
Desplat começou compondo para curtas-metragens há 26 anos, passou a ser comentado fora do meio musical a partir da primeira parceria com Jacques Audiard em Regarde les hommes tomber (1994), mas é apenas quando George Clooney o convida para Syriana – A Indústria do Petróleo que Desplat deixa de ser um homem das sombras para o público de cinema.
A matéria completa pode ser lida neste link no Cineclick – Tudo Sobre Cinema.
Ouça a um trecho da trilha de Desplat para A Árvore da Vida
Ouça L'abandon, uma das peças mais bonitas de Desplat
Ouça The Household, composição de Desplat para O Discurso do Rei
domingo, 20 de novembro de 2011
Blaxploitation: o gênero que obrigou o mundo a notar os negros
Mais do que inverter a ordem e encher a tela de atores e atrizes negras, o Blaxploitation, gênero cinematográfico que surgiu no início dos anos 1970 sintonizado com a breve abertura de Hollywood e às transformações políticas, ainda encanta pelo atrevimento de seus heróis. Ser protagonista e conduzir o enredo não é suficiente: é preciso tirar um sarro, ser agressivo, colocar-se no ataque, espezinhar, sentar na cara dos adversários.
Ser um bad ass como dizem os americanos. A mostra Tela Negra – O Cinema do Blaxploitation, que ocupou o CCBB de São Paulo e do Rio de Janeiro há duas semanas e domina o CineSesc paulistano até quinta-feira (24/11), joga luzes numa pequena parte da volumosa produção do gênero que desapareceu tão meteoricamente quanto surgiu.
O Blaxploitation é um cinema que responde ao seu tempo, um gênero composto de filmes que tiram os negros dos papeis coadjuvantes serviçais e idealizam a figura do herói. Homens (Richard Roundtree, Melvin Van Peebles) e mulheres (Tamara Dobson, Pam Grier) gostosos, desejados, atrevidos, que flertam, mergulham ou trabalham com a lei e a marginalidade. Personagens reflexo de uma romantização da inversão do status quo: os policiais, ponta final do iceberg de opressão, são os mais espezinhados no Blaxploitation.
Nos filmes que integram a mostra Tela Negra, mas também em muitos outros que ficaram de fora, tamanha a prolífica produção entre 1970-79, o pé de um negro na mesa de um cop é uma vitória tão significativa quanto uma condenação na Justiça por racismo. É com esse atrevimento que os personagens do Blaxploitation jogam na cara de quem não quer ver: está na hora de os negros serem notados, queiram ou não. Entre filmes bons e ruins, o gênero vai ao menos ficar na História por cumprir essa função.
É um cinema de vingança, de humor e de raiva. Descaradamente aberto e honesto em suas fraquezas. Cinema imperfeito que pulsa. Cinema que joga com crueldade e ironia a discriminação na cara da sociedade norte-americana. Não é um cinema essencialmente de reflexão (apesar de hoje ser possível fazê-la dada a mínima distância histórica) como talvez ansiava a contraditória e notoriamente combativa NAACP, a primeira associação dos Estados Unidos a brigar formalmente, desde 1909, pelos direitos civis dos negros – em 1915, defendeu a proibição da estreia de O Nascimento de Uma Nação, maravilhoso e racista filme de D.W. Grifith.
Após quatro décadas, seria leviano observar a paixão e a rejeição que o Blaxploitation gerou à época como uma disputa de Fla-Flu. Existem muitas áreas cinzas entre o herói na fronteira da bandidagem, a condenação da falta de moralidade desses personagens e os que imputaram a essas produções a culpa por manter a população negra alienada.
Me parece que, naquele momento de urgência, quem xingou e cunhou a esses filmes o pejorativo termo Exploração dos Negros (Blaxploitation, reapropriado com orgulho por seu público consumidor) não percebeu que, assim como o trabalho de formiga dentro da legalidade feito pela NAACP, um herói de um filme-provocação como Shaft também é ferramenta de combate.
São esses heróis às avessas que tentam corroer o sistema com violência e por meio dela explicitam a exclusão. Não são os negros comportados que levam uma vida honesta ou aspiram à pequena burguesia. O traficante Priest, a vingadora Coffy, o detetive “pegador” Shaft, a policial arrasa-quarteirão Cleópatra Jones ou o lutador Leroy (de Operação Dragão Negro/Blackfist, que infelizmente não está na mostra) são tão necessários quanto o bom mocismo domesticado de Sidney Poitier.
Hoje me parece mais simples perceber isso.
Nos anos 70, porém, a crítica não enxergou valor artístico em um cinema irregular e deliberadamente carregado nos clichês. O movimento negro tradicional não entendeu que avançar vagarosamente não era a única tática e que a agressividade do Blaxploitation também era necessária. Quem abraçou esse cinema foram os jovens espectadores, seja pela pura diversão de um filme como Foxy Brown, pela arrepiante trilha de Curtis Mayfield em Super Fly ou por se deliciar com a aparente inversão da ordem (negro protagonista e astuto, branco coadjuvante, tolo e apombocado).
Assim como os papeis de empregada de Hattie McDaniel foram fundamentais para que Halle Berry e Denzel Washington se tornassem estrelas e ganhassem um Oscar, o Blaxploitation abriu indiretamente portas – mesmo não sendo do jeito que o Movimento Negro tradicional gostaria. Ainda me parece necessário ressaltar isso.
Em tempo: a programação da mostra Tela Negra - O Cinema do Blaxploitation está no site do CineSesc.
Ser um bad ass como dizem os americanos. A mostra Tela Negra – O Cinema do Blaxploitation, que ocupou o CCBB de São Paulo e do Rio de Janeiro há duas semanas e domina o CineSesc paulistano até quinta-feira (24/11), joga luzes numa pequena parte da volumosa produção do gênero que desapareceu tão meteoricamente quanto surgiu.
O Blaxploitation é um cinema que responde ao seu tempo, um gênero composto de filmes que tiram os negros dos papeis coadjuvantes serviçais e idealizam a figura do herói. Homens (Richard Roundtree, Melvin Van Peebles) e mulheres (Tamara Dobson, Pam Grier) gostosos, desejados, atrevidos, que flertam, mergulham ou trabalham com a lei e a marginalidade. Personagens reflexo de uma romantização da inversão do status quo: os policiais, ponta final do iceberg de opressão, são os mais espezinhados no Blaxploitation.
Nos filmes que integram a mostra Tela Negra, mas também em muitos outros que ficaram de fora, tamanha a prolífica produção entre 1970-79, o pé de um negro na mesa de um cop é uma vitória tão significativa quanto uma condenação na Justiça por racismo. É com esse atrevimento que os personagens do Blaxploitation jogam na cara de quem não quer ver: está na hora de os negros serem notados, queiram ou não. Entre filmes bons e ruins, o gênero vai ao menos ficar na História por cumprir essa função.
É um cinema de vingança, de humor e de raiva. Descaradamente aberto e honesto em suas fraquezas. Cinema imperfeito que pulsa. Cinema que joga com crueldade e ironia a discriminação na cara da sociedade norte-americana. Não é um cinema essencialmente de reflexão (apesar de hoje ser possível fazê-la dada a mínima distância histórica) como talvez ansiava a contraditória e notoriamente combativa NAACP, a primeira associação dos Estados Unidos a brigar formalmente, desde 1909, pelos direitos civis dos negros – em 1915, defendeu a proibição da estreia de O Nascimento de Uma Nação, maravilhoso e racista filme de D.W. Grifith.
Após quatro décadas, seria leviano observar a paixão e a rejeição que o Blaxploitation gerou à época como uma disputa de Fla-Flu. Existem muitas áreas cinzas entre o herói na fronteira da bandidagem, a condenação da falta de moralidade desses personagens e os que imputaram a essas produções a culpa por manter a população negra alienada.
Me parece que, naquele momento de urgência, quem xingou e cunhou a esses filmes o pejorativo termo Exploração dos Negros (Blaxploitation, reapropriado com orgulho por seu público consumidor) não percebeu que, assim como o trabalho de formiga dentro da legalidade feito pela NAACP, um herói de um filme-provocação como Shaft também é ferramenta de combate.
São esses heróis às avessas que tentam corroer o sistema com violência e por meio dela explicitam a exclusão. Não são os negros comportados que levam uma vida honesta ou aspiram à pequena burguesia. O traficante Priest, a vingadora Coffy, o detetive “pegador” Shaft, a policial arrasa-quarteirão Cleópatra Jones ou o lutador Leroy (de Operação Dragão Negro/Blackfist, que infelizmente não está na mostra) são tão necessários quanto o bom mocismo domesticado de Sidney Poitier.
Hoje me parece mais simples perceber isso.
Nos anos 70, porém, a crítica não enxergou valor artístico em um cinema irregular e deliberadamente carregado nos clichês. O movimento negro tradicional não entendeu que avançar vagarosamente não era a única tática e que a agressividade do Blaxploitation também era necessária. Quem abraçou esse cinema foram os jovens espectadores, seja pela pura diversão de um filme como Foxy Brown, pela arrepiante trilha de Curtis Mayfield em Super Fly ou por se deliciar com a aparente inversão da ordem (negro protagonista e astuto, branco coadjuvante, tolo e apombocado).
Assim como os papeis de empregada de Hattie McDaniel foram fundamentais para que Halle Berry e Denzel Washington se tornassem estrelas e ganhassem um Oscar, o Blaxploitation abriu indiretamente portas – mesmo não sendo do jeito que o Movimento Negro tradicional gostaria. Ainda me parece necessário ressaltar isso.
Em tempo: a programação da mostra Tela Negra - O Cinema do Blaxploitation está no site do CineSesc.
sexta-feira, 18 de novembro de 2011
A Saga Crepúsculo: Amanhecer - Parte 1
Mais romance água com açúcar, menos ação. A Saga Crepúsculo: Amanhecer - Parte 1, que já nasce como blockbuster antes de estrear, dominando metade (!) das salas de cinema do Brasil a partir desta sexta-feira (18/11), é enfadonho e tão conservador quanto as outras produções que construíram a franquia, especialmente Lua Nova.
A não ser por razões de mercado, o filme não justifica a divisão em duas partes. O inchaço do enredo transparece na artificialidade das situações dramáticas - diferentemente de Harry Potter e as Relíquias da Morte, cuja extensão do livro tornou aceitável a existência de dois capítulos finais.
A íntegra do texto está no Cineclick - Tudo sobre Cinema.
A não ser por razões de mercado, o filme não justifica a divisão em duas partes. O inchaço do enredo transparece na artificialidade das situações dramáticas - diferentemente de Harry Potter e as Relíquias da Morte, cuja extensão do livro tornou aceitável a existência de dois capítulos finais.
A íntegra do texto está no Cineclick - Tudo sobre Cinema.
segunda-feira, 17 de outubro de 2011
Rapidinhas do Festival do Rio 3
Leon Cakoff – Apesar de saber que uma perene cordialidade mantém a relação entre o Festival do Rio e a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, imaginei que, por ocasião da morte de Leon Cakoff, o criador da Mostra, o evento carioca fosse se manifestar oficialmente – seja por nota ou por meio de Andreia Cals, coordenadora da Première Brasil.
Não o fez, a não ser que eu tenha deixado passar batida alguma sessão. No máximo, um membro da equipe de Amanhã Nunca Mais pediu, na apresentação do longa no Cine Odeon, uma salva de palmas a Leon. Além disso, a produtora Vânia Catani, de O Palhaço, rendeu uma homenagem a ele enquanto apresentou o filme de Selton Mello.
Vaias 2 – A Première Brasil teve filmes muito bons, bons, médios e ruins. Uma constante, porém, na competição brasileira foram as vaias quando a vinheta da RioFilme, apresentada por Bruno Mazzeo, subia à tela.
Como disse no post abaixo, ainda não sei se a crítica é direcionada à mudança de perfil da RioFilme, que tem investido financeiramente para trazer produções estrangeiras (caso de Crepúsculo) para filmar no Rio de Janeiro; ao Bruno Mazzeo, que na vinheta se diz um homem de cinema; ou aos dois.
Há uma dica, porém: a intensidade das vaias é diretamente proporcional às pretensões artísticas do longa exibido após a vinheta.. Em filmes assumidamente comerciais (A Novela das 8 ou Amanhã Nunca Mais), poucas ou praticamente nenhuma vaia. Em filmes com mais fôlego, a crítica era uníssona.
O episódio demonstra que há uma fissura envolvendo a entidade, realizadores e cinéfilos.
Sem Abel Ferrara – O grande imprevisto da edição 2011 do Festival do Rio envolve 4:44 Last Day on Earth e seu criador, o diretor Abel Ferrara.
Primeiro, por problemas técnicos (que, na verdade, envolvem medidas seguranças para impedir a reprodução do arquivo), a sessão para a imprensa deixou de ser realizada na última quarta-feira (12/10). Depois, a primeira sessão foi cancelada, sendo substituída por um filme que fez feio em Veneza.
Na sequência, nova sessão cancelada. Não será desta vez que Abel Ferrara vai mostrar ao seu público no Brasil se voltou a filmar bem.
Não o fez, a não ser que eu tenha deixado passar batida alguma sessão. No máximo, um membro da equipe de Amanhã Nunca Mais pediu, na apresentação do longa no Cine Odeon, uma salva de palmas a Leon. Além disso, a produtora Vânia Catani, de O Palhaço, rendeu uma homenagem a ele enquanto apresentou o filme de Selton Mello.
Vaias 2 – A Première Brasil teve filmes muito bons, bons, médios e ruins. Uma constante, porém, na competição brasileira foram as vaias quando a vinheta da RioFilme, apresentada por Bruno Mazzeo, subia à tela.
Como disse no post abaixo, ainda não sei se a crítica é direcionada à mudança de perfil da RioFilme, que tem investido financeiramente para trazer produções estrangeiras (caso de Crepúsculo) para filmar no Rio de Janeiro; ao Bruno Mazzeo, que na vinheta se diz um homem de cinema; ou aos dois.
Há uma dica, porém: a intensidade das vaias é diretamente proporcional às pretensões artísticas do longa exibido após a vinheta.. Em filmes assumidamente comerciais (A Novela das 8 ou Amanhã Nunca Mais), poucas ou praticamente nenhuma vaia. Em filmes com mais fôlego, a crítica era uníssona.
O episódio demonstra que há uma fissura envolvendo a entidade, realizadores e cinéfilos.
Sem Abel Ferrara – O grande imprevisto da edição 2011 do Festival do Rio envolve 4:44 Last Day on Earth e seu criador, o diretor Abel Ferrara.
Primeiro, por problemas técnicos (que, na verdade, envolvem medidas seguranças para impedir a reprodução do arquivo), a sessão para a imprensa deixou de ser realizada na última quarta-feira (12/10). Depois, a primeira sessão foi cancelada, sendo substituída por um filme que fez feio em Veneza.
Na sequência, nova sessão cancelada. Não será desta vez que Abel Ferrara vai mostrar ao seu público no Brasil se voltou a filmar bem.
sábado, 15 de outubro de 2011
Leon Cakoff, a alma da Mostra: memórias de um cinéfilo
Tarefa muito difícil escrever sobre Leon Cakoff. A idade não me permitiu estar in loco quando, muito antes do compartilhamento de filmes por torrent e a cinefilia de internet, a Mostra trouxe filmes então raríssimos e de nacionalidades exóticas. Sem legenda. A urgência de ver cinema naquele momento só me é trazida por relatos de amigos.
Também não posso falar sobre Leon numa perspectiva pessoal: só o conheço como “homem de cinema”. Conversar mesmo só uma vez, meio en passant, no jantar da crítica na Mostra de 2010, esforço da Margarida Oliveira, a Margô, em reunir a um grupo que geralmente está disperso na correria da Mostra.
Nos trombamos em corredores, intervalos de sessões e rodas de amigos em comum. Ele não sabia quem eu era. Em um momento, porém, atravessei sua vida de maneira cômica: o acidente no debate com Wim Wenders.
Um dos preferidos de Leon, o alemão, que tenho a sensação de ser uma presença constante na Mostra, deu uma entrevista coletiva sobre sua exposição fotográfica. Na plateia, a senhora Teruyo Nogami, assistente de Akira Kurosawa, em São Paulo para lançar À Espera do Tempo – Filmando com Kurosawa.
Acaba o debate, “obrigado” com sotaque alemão, aplausos etc. Atrás de mim, a senhora Nogami tropeça e, num reflexo espalhafatoso, agarro-a e deixo seu corpo desabar sobre o meu. “Arigatô, arigatô”, diz ela. Sua tradutora agradece. Renata de Almeida, codiretora da Mostra, também agradece. Leon agradece. Salvei a memória viva do cinema japonês, brinco. Rimos e nos vamos, a correria nos chama.
Esta foi a única vez que nos “relacionamos” pessoalmente. De resto, sempre foi uma relação unilateral entre eu e sua cria, a Mostra. É sobre esta que pretendo falar: o compartilhamento do cinema e, agora, a orfandade da cinefilia.
Há cinco edições
Cinéfilo tardio que tateou por cinematografias às escuras, fui entender o que significava a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo aos 20 anos, três décadas após o surgimento da Mostra. Foi a edição do pôster vermelho.
Cego a uma cinefilia mais aprumada, perdi, porém, a retrospectiva da obra de Joaquim Pedro e a retrospectiva do cinema político italiano, período que só viria a descobrir três anos depois por meio da paixão de Carlos Reichenbach.
Veio a edição de 2007, a do pôster com Babenco, cujo O Passado me frustrou bastante. Tivemos a linda sessão de Cartola: quando a tela ficou preta por quase um minuto, o público começou a xingar achando se tratar de problema na projeção. Era, porém, um recurso narrativo de Hilton Lacerda e Lírio Ferreira. Desci a rua Augusta atordoado pelo filme – à época cantava e estudava samba. Chorei.
Foi o ano também de Irina Palm, filme médio que adorei à época: meu primeiro debate sério. Logo após a sessão, ainda inebriado pela trama, um colega destruiu o filme. Fiquei atônito. Marcou-me também Vocês, os Vivos, de Roy Anderson, sueco que abriu os olhos para outro tipo de cinema. Foi neste ano também que a Mostra trouxe um dos autores que hoje me define e no qual me projeto, mas que descobri recentemente por meio do amigo e crítico Sergio Alpendre: o francês Jacques Nolot e sua obra-prima Avant que J’oublie.
Já ia me esquecendo: 2007 foi o ano também em que Claude Lelouch escreveu mais um capítulo da sua cruzada contra a Nouvelle Vague, à qual acusa (especialmente aos críticos que a tomam como farol) de ter ofuscado seu cinema de amor. Vê-lo falar de cinema na FAAP foi bem mais interessante que seu filme daquele ano, Crimes de Autor.
Assayas e Jia Zhang-ke
Em 2008, a edição do pôster de Tomie Othake, já escrevia mais assiduamente sobre cinema e tinha um discernimento mínimo. Deu para aproveitar muito mais a Mostra. Foi o ano que descobri Olivier Assayas, com Horas de Verão, e Jia Zhang-ke, com Em Busca da Vida.
Naquela mesma edição, a Mostra teve a coragem de trazer a íntegra de Berlin Alexanderplatz, programou uma linda projeção de O Poderoso Chefão e ousou ao colocar num patamar superestimado a obra de Pablo Trapero. Ano também em que Hugh Hudson mostrou um novo corte de Revolução Revisitada e reclamou do ostracismo.
Assistimos também a um cinema português vivo, representado por Aquele Querido Mês de Agosto. Reclamamos, todavia, da má qualidade das projeções em digital, tema que se tornou presente em todas as mostras desde então.
De Haneke a Kiarostami
Nos últimos dois anos, a Mostra continuou na mesma toada: superlotada, projeções de qualidade duvidosa e filmes apaixonantes. Em 2009, alguns realizadores tradicionais decepcionaram, como Almodóvar (Abraços Partidos) e Ang Lee (Aconteceu em Woodstock). Do outro, os velhinhos deram conta do recado: Resnais (Ervas Daninhas), Wajda (Alma Doce) e Manoel de Oliveira (Singularidades de uma Rapariga Loura).
Foi o ano em que vi bons filmes que imaginei reencontrar nos meses seguintes no circuito comercial, mas nunca chegaram a ser lançados. Casos de Lebanon e Fish Tank. Ano também em que descobri o valor de rever um filme do qual não se gosta à primeira vista, como Vincere, que se tornaria um dos grandes após revê-lo.
Em 2010, quase tive a honra de ver Manoel de Oliveira de perto. Convidado para a abertura da Mostra, ficou doente e mandou apenas uma mensagem em vídeo, bem humorada. Em compensação, vi uma obra-prima que defendo como tal com unhas e dentes: Cópia Fiel, apaixonante filme de Kiarostami. Porém, o evento mais marcante foi a exibição da inédita cópia na íntegra de Metrópolis: milhares de pessoas esparramadas no Gramado do Ibirapuera para ver um filme mudo de 1927! Eu estava lá e foi a Mostra que me proporcionou esta experiência.
Fechando o diário
Os cânones do jornalismo asséptico condenariam este texto de memórias construído em primeira pessoa. Às batatas, que se vão! Como cinéfilo, não há como falar de Leon Cakoff sem passar automaticamente à sua cria, a Mostra. E não dá para conversar sobre ela sem passar por memórias.
Cakoff foi um daqueles tipos que se salvaram por causa do cinema, que se enxergou e projetou em personagens, cenas e cineastas. Assim somos muito de nós, os cinéfilos, que passam a se dedicar à reflexão crítica e à troca de ideias no texto.
Falar dele – em que pese, advertem os amigos ou colaboradores, seu ar tratorista e autoritário nos bastidores – é recuperar as memórias de uma formação: de cinéfilo e de ser humano.
Esta é a memória que vou guardar.
Também não posso falar sobre Leon numa perspectiva pessoal: só o conheço como “homem de cinema”. Conversar mesmo só uma vez, meio en passant, no jantar da crítica na Mostra de 2010, esforço da Margarida Oliveira, a Margô, em reunir a um grupo que geralmente está disperso na correria da Mostra.
Nos trombamos em corredores, intervalos de sessões e rodas de amigos em comum. Ele não sabia quem eu era. Em um momento, porém, atravessei sua vida de maneira cômica: o acidente no debate com Wim Wenders.
Um dos preferidos de Leon, o alemão, que tenho a sensação de ser uma presença constante na Mostra, deu uma entrevista coletiva sobre sua exposição fotográfica. Na plateia, a senhora Teruyo Nogami, assistente de Akira Kurosawa, em São Paulo para lançar À Espera do Tempo – Filmando com Kurosawa.
Acaba o debate, “obrigado” com sotaque alemão, aplausos etc. Atrás de mim, a senhora Nogami tropeça e, num reflexo espalhafatoso, agarro-a e deixo seu corpo desabar sobre o meu. “Arigatô, arigatô”, diz ela. Sua tradutora agradece. Renata de Almeida, codiretora da Mostra, também agradece. Leon agradece. Salvei a memória viva do cinema japonês, brinco. Rimos e nos vamos, a correria nos chama.
Esta foi a única vez que nos “relacionamos” pessoalmente. De resto, sempre foi uma relação unilateral entre eu e sua cria, a Mostra. É sobre esta que pretendo falar: o compartilhamento do cinema e, agora, a orfandade da cinefilia.
Há cinco edições
Cinéfilo tardio que tateou por cinematografias às escuras, fui entender o que significava a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo aos 20 anos, três décadas após o surgimento da Mostra. Foi a edição do pôster vermelho.
Cego a uma cinefilia mais aprumada, perdi, porém, a retrospectiva da obra de Joaquim Pedro e a retrospectiva do cinema político italiano, período que só viria a descobrir três anos depois por meio da paixão de Carlos Reichenbach.
Veio a edição de 2007, a do pôster com Babenco, cujo O Passado me frustrou bastante. Tivemos a linda sessão de Cartola: quando a tela ficou preta por quase um minuto, o público começou a xingar achando se tratar de problema na projeção. Era, porém, um recurso narrativo de Hilton Lacerda e Lírio Ferreira. Desci a rua Augusta atordoado pelo filme – à época cantava e estudava samba. Chorei.
Foi o ano também de Irina Palm, filme médio que adorei à época: meu primeiro debate sério. Logo após a sessão, ainda inebriado pela trama, um colega destruiu o filme. Fiquei atônito. Marcou-me também Vocês, os Vivos, de Roy Anderson, sueco que abriu os olhos para outro tipo de cinema. Foi neste ano também que a Mostra trouxe um dos autores que hoje me define e no qual me projeto, mas que descobri recentemente por meio do amigo e crítico Sergio Alpendre: o francês Jacques Nolot e sua obra-prima Avant que J’oublie.
Já ia me esquecendo: 2007 foi o ano também em que Claude Lelouch escreveu mais um capítulo da sua cruzada contra a Nouvelle Vague, à qual acusa (especialmente aos críticos que a tomam como farol) de ter ofuscado seu cinema de amor. Vê-lo falar de cinema na FAAP foi bem mais interessante que seu filme daquele ano, Crimes de Autor.
Assayas e Jia Zhang-ke
Em 2008, a edição do pôster de Tomie Othake, já escrevia mais assiduamente sobre cinema e tinha um discernimento mínimo. Deu para aproveitar muito mais a Mostra. Foi o ano que descobri Olivier Assayas, com Horas de Verão, e Jia Zhang-ke, com Em Busca da Vida.
Naquela mesma edição, a Mostra teve a coragem de trazer a íntegra de Berlin Alexanderplatz, programou uma linda projeção de O Poderoso Chefão e ousou ao colocar num patamar superestimado a obra de Pablo Trapero. Ano também em que Hugh Hudson mostrou um novo corte de Revolução Revisitada e reclamou do ostracismo.
Assistimos também a um cinema português vivo, representado por Aquele Querido Mês de Agosto. Reclamamos, todavia, da má qualidade das projeções em digital, tema que se tornou presente em todas as mostras desde então.
De Haneke a Kiarostami
Nos últimos dois anos, a Mostra continuou na mesma toada: superlotada, projeções de qualidade duvidosa e filmes apaixonantes. Em 2009, alguns realizadores tradicionais decepcionaram, como Almodóvar (Abraços Partidos) e Ang Lee (Aconteceu em Woodstock). Do outro, os velhinhos deram conta do recado: Resnais (Ervas Daninhas), Wajda (Alma Doce) e Manoel de Oliveira (Singularidades de uma Rapariga Loura).
Foi o ano em que vi bons filmes que imaginei reencontrar nos meses seguintes no circuito comercial, mas nunca chegaram a ser lançados. Casos de Lebanon e Fish Tank. Ano também em que descobri o valor de rever um filme do qual não se gosta à primeira vista, como Vincere, que se tornaria um dos grandes após revê-lo.
Em 2010, quase tive a honra de ver Manoel de Oliveira de perto. Convidado para a abertura da Mostra, ficou doente e mandou apenas uma mensagem em vídeo, bem humorada. Em compensação, vi uma obra-prima que defendo como tal com unhas e dentes: Cópia Fiel, apaixonante filme de Kiarostami. Porém, o evento mais marcante foi a exibição da inédita cópia na íntegra de Metrópolis: milhares de pessoas esparramadas no Gramado do Ibirapuera para ver um filme mudo de 1927! Eu estava lá e foi a Mostra que me proporcionou esta experiência.
Fechando o diário
Os cânones do jornalismo asséptico condenariam este texto de memórias construído em primeira pessoa. Às batatas, que se vão! Como cinéfilo, não há como falar de Leon Cakoff sem passar automaticamente à sua cria, a Mostra. E não dá para conversar sobre ela sem passar por memórias.
Cakoff foi um daqueles tipos que se salvaram por causa do cinema, que se enxergou e projetou em personagens, cenas e cineastas. Assim somos muito de nós, os cinéfilos, que passam a se dedicar à reflexão crítica e à troca de ideias no texto.
Falar dele – em que pese, advertem os amigos ou colaboradores, seu ar tratorista e autoritário nos bastidores – é recuperar as memórias de uma formação: de cinéfilo e de ser humano.
Esta é a memória que vou guardar.
sexta-feira, 14 de outubro de 2011
Leon Cakoff: 1948-2011
Leon Cakoff, o fundador da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o evento de cinema que peitou a ditadura nos anos 1970 e 80, morreu nesta sexta-feira (14/10) em São Paulo. Leon brigava com um câncer há tempos.
Ainda estou sem palavras. Triste, sim. Estava redigindo a entrevista com Dario Argento que fiz aqui no Festival do Rio quando soube da notícia. É muito triste para um cinéfilo que tem em sua cria, a Mostra, o principal veículo fomentador da cinefilia.
Muitas de minhas memórias com o cinema estão lá, na Mostra. Descobrir cinematografias e autores, ter meu gosto contestado, iniciar a reflexão sobre cinema... várias coisas em que a primeira vez aconteceu na Mostra.
Escrevi um breve texto com memórias minhas que passam pelos filmes da Mostra - publicarei em algumas horas. Lamentamos, sim, sua morte. Porém, a maneira de honrarmos sua cria é ajudando a mantê-la e construí-la, coletivamente, apontando problemas e ressaltando sua força. É não deixar a peteca cair.
Ainda estou sem palavras. Triste, sim. Estava redigindo a entrevista com Dario Argento que fiz aqui no Festival do Rio quando soube da notícia. É muito triste para um cinéfilo que tem em sua cria, a Mostra, o principal veículo fomentador da cinefilia.
Muitas de minhas memórias com o cinema estão lá, na Mostra. Descobrir cinematografias e autores, ter meu gosto contestado, iniciar a reflexão sobre cinema... várias coisas em que a primeira vez aconteceu na Mostra.
Escrevi um breve texto com memórias minhas que passam pelos filmes da Mostra - publicarei em algumas horas. Lamentamos, sim, sua morte. Porém, a maneira de honrarmos sua cria é ajudando a mantê-la e construí-la, coletivamente, apontando problemas e ressaltando sua força. É não deixar a peteca cair.
quarta-feira, 12 de outubro de 2011
Rapidinhas do Festival do Rio 2
Vaias – Uma das vinhetas deste ano é a da RioFilme propagandeando suas bem-feitorias ao cinema brasileiro. Seu garoto-propaganda por alguns segundos é Bruno Mazzeo.
Todas as noites, a vinheta é exibida antes da sessão dos longas e curtas de ficção. Todas as noites, é vaiada – à exceção de segunda-feira, curiosamente, o dia em que se exibiu A Novela das 8. Resta saber para quem é a vaia: para a RioFilme, cuja mudança de perfil é criticada; ao Bruno Mazzeo, que no vídeo se diz um profissional de cinema; ou para ambos.
Nicolas Provost – O festival trouxe o filme mais intenso e carnal que já assisti sobre a imigração. Chama-se O Invasor e a direção é do belga Nicolas Provost, curta-metragista que fez uma obra-prima neste ano, Stardust (Poeira de Estrelas), exibida no Festival de Curtas de SP.
O Invasor não opera o sequestro emocional de Terraferma. Pelo contrário, propõe apenas uma relação de sensações, que o espectador sinta na pele a agonia de ser um mano negra na Europa.
Camila Pitanga – Eu Receberia as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios não é um filme de começo, meio e fim, mas um ritual xamânico que tem em Camila Pitanga sua vida e energia.
O filme é baseado no livro de Marçal Aquino e representa uma digna evolução comparado com o filme anterior de Beto Brant, o chato O Amor Segundo B. Schianberg, ou o último dirigido pela dupla Brant/Ciasta, Cão sem Dono. Um filme muito intenso cujas síncopes contaminam.
Todas as noites, a vinheta é exibida antes da sessão dos longas e curtas de ficção. Todas as noites, é vaiada – à exceção de segunda-feira, curiosamente, o dia em que se exibiu A Novela das 8. Resta saber para quem é a vaia: para a RioFilme, cuja mudança de perfil é criticada; ao Bruno Mazzeo, que no vídeo se diz um profissional de cinema; ou para ambos.
Nicolas Provost – O festival trouxe o filme mais intenso e carnal que já assisti sobre a imigração. Chama-se O Invasor e a direção é do belga Nicolas Provost, curta-metragista que fez uma obra-prima neste ano, Stardust (Poeira de Estrelas), exibida no Festival de Curtas de SP.
O Invasor não opera o sequestro emocional de Terraferma. Pelo contrário, propõe apenas uma relação de sensações, que o espectador sinta na pele a agonia de ser um mano negra na Europa.
Camila Pitanga – Eu Receberia as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios não é um filme de começo, meio e fim, mas um ritual xamânico que tem em Camila Pitanga sua vida e energia.
O filme é baseado no livro de Marçal Aquino e representa uma digna evolução comparado com o filme anterior de Beto Brant, o chato O Amor Segundo B. Schianberg, ou o último dirigido pela dupla Brant/Ciasta, Cão sem Dono. Um filme muito intenso cujas síncopes contaminam.
segunda-feira, 10 de outubro de 2011
Rapidinhas do Festival do Rio 1
Caçula das Irmãs Olsen – Um filme muito interessante está passando silenciosamente pelo Festival do Rio. Trata-se do americano Martha Marcy May Marlene, Melhor Direção em Sundance e uma das atrações de Cannes na mostra paralela Um Certo Olhar.
Não sei se terei tempo para escrever apropriadamente sobre ele no Cineclick, mas ao menos deixo um breve comentário. Uma menina (Elizabeth Olsen, “de beleza irritante”, como diz uma das personagens) vive em duas situações diferentes: na primeira, num modo coletivo com alguns valores familiares e morais mais que dúbios. No outro, quando reencontra sua irmã mais velha, típica pequena burguesa.
Dois momentos dos quais não sabemos muito e aprendemos aos poucos. Montagem e direção espetacular: assim como a cabeça da protagonista está confusa com esses dois tempos distintos que a deixam à deriva, também ficamos perdidos. Filme de sensações, de experiência dentro e após a sala de cinema.
Fora de sintonia – A Première Brasil, grande janela para filmes brasileiros aqui no Festival do Rio, vive um contrassenso. De um lado, aposta em longas ousados como os dos três primeiros dias de competição – Histórias que Só Existem Quando Lembradas, Girimunho e Mãe e Filha)
Os curta-metragens, porém, tocam em outra nota. Além de fracos, os curtas Cavalo, Gisela e Assim como Ela não estabelecem diálogo formal algum com o longa que introduzem nas sessões noturnas no Cine Odeon. Na sessão de domingo (9/10), um curta de fotografia acética e sem nuances (Assim como ela) veio antes de um longa de fotografia vigorosa e narrativa rigorosa (Mãe e Filha).
Por conta da seleção, nem sempre é possível estabelecer uma conversa entre longa e curta, mas seria de ótimo proveito fomentá-la sempre que factível. Ajuda na potencialização e permite uma compreensão mais ampla de ambos os formatos.
Béla Tarr?! – Após a bela sessão aqui no Festival, Mãe e Filha, que teve uma recepção morna, o que é uma injustiça com o tamanho do filme, as reações foram divididas (assim como o filme de Cronenberg, Um Método Perigoso).
Em brevíssimas conversas após o filme, surgiu uma comparação com o cinema de planos longos do húngaro Béla Tarr, do qual o Indie exibiu a obra-prima Satantango em mais de sete horas no CineSesc. Apesar de a composição dos planos ter obviamente bebido nele, não vejo intenção alguma do filme ou de seu realizador, Petrus Cariry, em fazer citações.
Trata-se de uma influência no inconsciente. Assim como Tarkovski, Pedro Costa, Velázquez... imagens que nos deixamos contaminar enquanto estamos vivos, procedimento comum a qualquer cinéfilo. Apesar de ambos mostrarem rigor com a câmera, a encenação em Cariry me parece mais solta do que em Tarr. Tenho a impressão também de que os filmes do húngaro (como O Cavalo de Turim tem pretensões filosóficas bem maiores.
Mãe e Filha mostra méritos suficientes para escapar de comparações que se detém na superfície.
Não sei se terei tempo para escrever apropriadamente sobre ele no Cineclick, mas ao menos deixo um breve comentário. Uma menina (Elizabeth Olsen, “de beleza irritante”, como diz uma das personagens) vive em duas situações diferentes: na primeira, num modo coletivo com alguns valores familiares e morais mais que dúbios. No outro, quando reencontra sua irmã mais velha, típica pequena burguesa.
Dois momentos dos quais não sabemos muito e aprendemos aos poucos. Montagem e direção espetacular: assim como a cabeça da protagonista está confusa com esses dois tempos distintos que a deixam à deriva, também ficamos perdidos. Filme de sensações, de experiência dentro e após a sala de cinema.
Fora de sintonia – A Première Brasil, grande janela para filmes brasileiros aqui no Festival do Rio, vive um contrassenso. De um lado, aposta em longas ousados como os dos três primeiros dias de competição – Histórias que Só Existem Quando Lembradas, Girimunho e Mãe e Filha)
Os curta-metragens, porém, tocam em outra nota. Além de fracos, os curtas Cavalo, Gisela e Assim como Ela não estabelecem diálogo formal algum com o longa que introduzem nas sessões noturnas no Cine Odeon. Na sessão de domingo (9/10), um curta de fotografia acética e sem nuances (Assim como ela) veio antes de um longa de fotografia vigorosa e narrativa rigorosa (Mãe e Filha).
Por conta da seleção, nem sempre é possível estabelecer uma conversa entre longa e curta, mas seria de ótimo proveito fomentá-la sempre que factível. Ajuda na potencialização e permite uma compreensão mais ampla de ambos os formatos.
Béla Tarr?! – Após a bela sessão aqui no Festival, Mãe e Filha, que teve uma recepção morna, o que é uma injustiça com o tamanho do filme, as reações foram divididas (assim como o filme de Cronenberg, Um Método Perigoso).
Em brevíssimas conversas após o filme, surgiu uma comparação com o cinema de planos longos do húngaro Béla Tarr, do qual o Indie exibiu a obra-prima Satantango em mais de sete horas no CineSesc. Apesar de a composição dos planos ter obviamente bebido nele, não vejo intenção alguma do filme ou de seu realizador, Petrus Cariry, em fazer citações.
Trata-se de uma influência no inconsciente. Assim como Tarkovski, Pedro Costa, Velázquez... imagens que nos deixamos contaminar enquanto estamos vivos, procedimento comum a qualquer cinéfilo. Apesar de ambos mostrarem rigor com a câmera, a encenação em Cariry me parece mais solta do que em Tarr. Tenho a impressão também de que os filmes do húngaro (como O Cavalo de Turim tem pretensões filosóficas bem maiores.
Mãe e Filha mostra méritos suficientes para escapar de comparações que se detém na superfície.
domingo, 2 de outubro de 2011
Vladimir Putin até 2024 e o cinema de Marina Goldovskaya
Em abril deste ano, o É Tudo Verdade, maior festival internacional de documentários da América Latina, trouxe para o Brasil Marina Goldovskaya, realizadora russa que começou nos anos 1960 como fotógrafa de televisão, mas que desde os anos 80 tornou-se peça-chave na reflexão sobre os caminhos da então União Soviética e, num momento posterior, o surgimento de um novo país, a Rússia, e suas contradições.
Tive o prazer de conversar por 45 minutos com ela, uma senhora genuinamente preocupada em falar sobre os grandes temas, sendo a Liberdade o principal deles. Marina registrou as aspirações de pessoas comuns e com isso colocou-se numa privilegiada posição de observadora: com sua câmera de vídeo, liberdade possibilitada pelo desenvolvimento tecnológico, foi às ruas no início dos anos 90 para sentir o que a população russa esperava dos novos ventos.
Viu e registrou a euforia da liberdade em O Gosto da Liberdade (1991) e as esperanças de O Espelho Estilhaçado (1992). Mas Marina não parou de posicionar sua câmera nos lugares certos, resultando em filmes que passaram a confrontar a complexidade da Rússia pós-União Soviética, como em A Sorte de Nascer na Rússia (1994).
Mais recentemente, o cinema de Marina percebeu, com sensibilidade, o fracasso da Perestroika e a tentativa de estabelecer processos democráticos. No ultrapessimista O Gosto Amargo da Liberdade (2010), contou a trajetória da Anna Politkovskaya, jornalista assassinada em 2006 por cobrir a violência do governo russo contra a população da Chechênia. A única repórter a se posicionar abertamente contra os desmandos Vladimir Putin.
No finalzinho da entrevista, perguntei para Marina o que ela esperava do futuro russo. “Em 1991, eu via manifestações e chorava porque sentia que todos nós estávamos juntos, felizes e finalmente nos tornando uma nação lutando por liberdade. Hoje somos uma nação dividida entre os querem e democracia e os que não”.
Haja perspicácia! Há uma semana, Putin anunciou que voltará à presidência da Rússia, posto do qual havia oficialmente se retirado em 2008, e terá direito a se reeleger por dois mandatos. Ou seja, se nenhuma crise política o abalar, pode permanecer no comando até 2024.
Em artigo para o The New York Times, Ellen Barry, diagnostica o seguinte: “Dada sua aparência numa roupa de mergulhador no último verão, Putin não demonstra estar em declínio físico, além de que os russos não parecem muito interessados em ocupar as ruas com protestos exigindo mudança. As elites esclarecidas, que constituem o grupo mais insatisfeito com Putin, são tão cínicas quanto ao governo que fica difícil imaginá-las fazendo algo mais que reclamar pelos cantos e reservar uma mensa num bom restaurante”.
Pois é, querida Marina, os que você diz quererem democracia não parecem estar inclinados em brigar por ela. Uma vez mais, seu cinema se faz necessário.
Tive o prazer de conversar por 45 minutos com ela, uma senhora genuinamente preocupada em falar sobre os grandes temas, sendo a Liberdade o principal deles. Marina registrou as aspirações de pessoas comuns e com isso colocou-se numa privilegiada posição de observadora: com sua câmera de vídeo, liberdade possibilitada pelo desenvolvimento tecnológico, foi às ruas no início dos anos 90 para sentir o que a população russa esperava dos novos ventos.
Viu e registrou a euforia da liberdade em O Gosto da Liberdade (1991) e as esperanças de O Espelho Estilhaçado (1992). Mas Marina não parou de posicionar sua câmera nos lugares certos, resultando em filmes que passaram a confrontar a complexidade da Rússia pós-União Soviética, como em A Sorte de Nascer na Rússia (1994).
Mais recentemente, o cinema de Marina percebeu, com sensibilidade, o fracasso da Perestroika e a tentativa de estabelecer processos democráticos. No ultrapessimista O Gosto Amargo da Liberdade (2010), contou a trajetória da Anna Politkovskaya, jornalista assassinada em 2006 por cobrir a violência do governo russo contra a população da Chechênia. A única repórter a se posicionar abertamente contra os desmandos Vladimir Putin.
No finalzinho da entrevista, perguntei para Marina o que ela esperava do futuro russo. “Em 1991, eu via manifestações e chorava porque sentia que todos nós estávamos juntos, felizes e finalmente nos tornando uma nação lutando por liberdade. Hoje somos uma nação dividida entre os querem e democracia e os que não”.
Haja perspicácia! Há uma semana, Putin anunciou que voltará à presidência da Rússia, posto do qual havia oficialmente se retirado em 2008, e terá direito a se reeleger por dois mandatos. Ou seja, se nenhuma crise política o abalar, pode permanecer no comando até 2024.
Em artigo para o The New York Times, Ellen Barry, diagnostica o seguinte: “Dada sua aparência numa roupa de mergulhador no último verão, Putin não demonstra estar em declínio físico, além de que os russos não parecem muito interessados em ocupar as ruas com protestos exigindo mudança. As elites esclarecidas, que constituem o grupo mais insatisfeito com Putin, são tão cínicas quanto ao governo que fica difícil imaginá-las fazendo algo mais que reclamar pelos cantos e reservar uma mensa num bom restaurante”.
Pois é, querida Marina, os que você diz quererem democracia não parecem estar inclinados em brigar por ela. Uma vez mais, seu cinema se faz necessário.
quinta-feira, 29 de setembro de 2011
Twitter, Facebook e Youtube: uma história de amor moderno
Chego um pouco tarde, já que o Indie – Mostra de Cinema Mundial acaba, em São Paulo, nesta quinta-feira (29/9). Mesmo assim, não vou deixar de comentar um filme que a mostra trouxe, contando com o tesão dos leitores em buscar online o longa-metragem Flores do Mal (Fleurs du Mal).
É o primeiro filme que me agrada, de fato, na tentativa de incorporar a internet, as redes sociais e o compartilhamento na dramaturgia. Temos a história de uma jovem iraniana de 20 anos que é mandada a Paris pelos pais para fugir do perigo dos protestos. No hall do hotel, conhece Gecko, um rapaz que lá trabalha, e inicia uma amizade que, por ventura, pode se tornar algo mais.
Mas não é um filme sobre o amor, apesar de ele estar presente em sua forma mais bela (o companheirismo) e destrutiva (o ódio). Flores do Mal é um sintoma de pessoas cujo encontro é possível por conta de ferramentas virtuais. Também não decorre daí um discurso positivo e propagandístico de mundo conectado ou outros lugares-comuns que se recusam a reconhecer os estragos que a virtualidade também traz às relações humanas.
Anahita integra a elite intelectual de Teerã que, em 2009, foi às ruas, protestou e pediu o fim da era Ahmadinejad. A onda verde que terminou com a perpetuação dele no poder, muitas prisões, mais censura e repressão. Gecko é um tipo libertário meio perdido na vida que só consegue se expressar pela dança de rua, tentando interagir com a cidade e procurar nela o que há de seu.
Dois personagens muito interessantes, cujas histórias e segredos compartilhamos ao longo do filme. Mas gostaria de voltar à tecnologia. Enquanto está em Paris, Anahita acompanha pela internet o desenrolar dos protestos. Amigos seus estão na linha de frente por mudanças. O sangue das vítimas da polícia truculenta tomam de assalto a tela. Ela não tem certeza de sua coragem para a ação política.
Pelo YouTube, Anahita vê o que se passa. Pelo Twitter, busca notícias de seus amigos e os locais dos próximos protestos. Pelo Facebook, reencontra Rachid depois de um desencontro inicial.
É interessante e inteligente a maneira em que David Dusa consegue integrar as tais mídias sociais e a virtualidade no filme. Flores do Mal não seria tão instigante se não fosse por esse gesto. Enfatizo: não se trata de um filme de tese ou de uma propaganda travestida por um discurso fofinho, mas sim de colocar como esses dois interessantes personagens estão imbuídos desses modos de comunicação e articulação política.
Digamos que entre o discurso “quero ser engraçadinho” de Medianeiras e a constatação de como o Facebook foi uma ferramenta efetiva nos recentes protestos no Egito, Flores do Mal esteja mais perto da verdade do segundo.
É uma pena, porém, que o filme seja irregular e não consiga acompanhar, como cinema, a força de seus personagens. Por vezes, há um descompasso entre o que eles fazem e como se colocam corporalmente e o que a câmera consegue captar. Mas não deixa de ser interessante ver Rachid fazendo sua dança no meio da rua, metrô e museus, brincando de anarquia enquanto a verdadeira anarquia está a milhares de quilômetros dele, no Irã.
A descrição do filme no site do Indie é precisa: “uma moderna história de amor”. Não moderninha.
O trailer de Flores do Mal (Fleurs du Mal) está abaixo (garanto que o filme é mais interessante do que indicam as imagens):
É o primeiro filme que me agrada, de fato, na tentativa de incorporar a internet, as redes sociais e o compartilhamento na dramaturgia. Temos a história de uma jovem iraniana de 20 anos que é mandada a Paris pelos pais para fugir do perigo dos protestos. No hall do hotel, conhece Gecko, um rapaz que lá trabalha, e inicia uma amizade que, por ventura, pode se tornar algo mais.
Mas não é um filme sobre o amor, apesar de ele estar presente em sua forma mais bela (o companheirismo) e destrutiva (o ódio). Flores do Mal é um sintoma de pessoas cujo encontro é possível por conta de ferramentas virtuais. Também não decorre daí um discurso positivo e propagandístico de mundo conectado ou outros lugares-comuns que se recusam a reconhecer os estragos que a virtualidade também traz às relações humanas.
Anahita integra a elite intelectual de Teerã que, em 2009, foi às ruas, protestou e pediu o fim da era Ahmadinejad. A onda verde que terminou com a perpetuação dele no poder, muitas prisões, mais censura e repressão. Gecko é um tipo libertário meio perdido na vida que só consegue se expressar pela dança de rua, tentando interagir com a cidade e procurar nela o que há de seu.
Dois personagens muito interessantes, cujas histórias e segredos compartilhamos ao longo do filme. Mas gostaria de voltar à tecnologia. Enquanto está em Paris, Anahita acompanha pela internet o desenrolar dos protestos. Amigos seus estão na linha de frente por mudanças. O sangue das vítimas da polícia truculenta tomam de assalto a tela. Ela não tem certeza de sua coragem para a ação política.
Pelo YouTube, Anahita vê o que se passa. Pelo Twitter, busca notícias de seus amigos e os locais dos próximos protestos. Pelo Facebook, reencontra Rachid depois de um desencontro inicial.
É interessante e inteligente a maneira em que David Dusa consegue integrar as tais mídias sociais e a virtualidade no filme. Flores do Mal não seria tão instigante se não fosse por esse gesto. Enfatizo: não se trata de um filme de tese ou de uma propaganda travestida por um discurso fofinho, mas sim de colocar como esses dois interessantes personagens estão imbuídos desses modos de comunicação e articulação política.
Digamos que entre o discurso “quero ser engraçadinho” de Medianeiras e a constatação de como o Facebook foi uma ferramenta efetiva nos recentes protestos no Egito, Flores do Mal esteja mais perto da verdade do segundo.
É uma pena, porém, que o filme seja irregular e não consiga acompanhar, como cinema, a força de seus personagens. Por vezes, há um descompasso entre o que eles fazem e como se colocam corporalmente e o que a câmera consegue captar. Mas não deixa de ser interessante ver Rachid fazendo sua dança no meio da rua, metrô e museus, brincando de anarquia enquanto a verdadeira anarquia está a milhares de quilômetros dele, no Irã.
A descrição do filme no site do Indie é precisa: “uma moderna história de amor”. Não moderninha.
O trailer de Flores do Mal (Fleurs du Mal) está abaixo (garanto que o filme é mais interessante do que indicam as imagens):
terça-feira, 27 de setembro de 2011
Ata-me! ou A Pele que Habito - Parte 3
Assim como A Pele que Habito, Ata-me! (1990) é uma história de amor. Mas também como muitos outros filmes de Almodóvar, o amor nem sempre é compartilhado pelas duas partes, ou melhor, passa por outros gestos bem menos nobres. A tortura, a prisão, o jogo de força e poder são alguns deles.
Ata-me! é legitimamente “um filme de Pedro Almodóvar”, uma daquelas histórias que viramos e dizemos: só ele poderia contá-la. Como chamá-lo, senão de inusitado, esse conto de fadas cômico-melodramático que começa com um crime, o sequestro da atriz Marina (Victoria Abril)?
Como os grandes autores no cinema, Almodóvar faz sempre o mesmo filme, com pequenas variações. A essência é a mesma: as ferramentas do cinema de gênero servem a um realizador cioso por dar um tapa na cara da sociedade (com charme, é claro). O tapa, em Ata-me!, é uma moça “respeitável” (a atriz) apaixonar-se por um seqüestrador amoral (Antonio Banderas, quando ainda queria ser ator de verdade, não um burocrata da atuação).
Nesse conto de fadas elegante, está em jogo não só o amor, mas também o cinema. Temos o longa que nos é mostrado e, dentro deste, outro que está sendo rodado, protagonizado por Marina Osorio e dirigido por Máximo Espejo (Francisco Rabal). Um filme de terror comandado por um diretor outrora respeitado, hoje paraplégico e decadente, filmando apenas pela ajuda dos amigos (quase como a Norma Desmond de Crepúsculo dos Deuses).
Todo o conteúdo humanista de Ata-me não está na belíssima e brega sequência final ou nos movimentos de câmera que ganham classe com a música de Ennio Morricone. O esforço humano de sair da perspectiva egoísta e colocar-se no lugar do outro está na cena em que Máximo, na cadeira de rodas, devora sua atriz-fetiche na tela de TV.
Sua mulher o espreita, mas não diz nada. Cala-se e entende. Como julgar um homem que não consegue mais fazer o que deu sentido à sua vida: dar vazão ao desejo e fazer cinema?
Mais do que no amor da atriz pelo sequestrador, Ata-me! representa o caráter humanista do cinema de Almodóvar nessa cena em que Máximo devora a imagem de sua atriz.
Não é coincidência que esse plano vá reverberar num dos planos mais bonitos de A Pele que Habito, na qual Antonio Banderas, cirurgião psicótico e traumatizado, imagina o sexo com sua cobaia, Vera, apenas mirando-a por uma imensa televisão.
Leia mais: A Pele que Habito é a maior frustração de 2011
Leia mais2: Maus Hábitos e o lado traiçoeiro do amor
Ata-me! é legitimamente “um filme de Pedro Almodóvar”, uma daquelas histórias que viramos e dizemos: só ele poderia contá-la. Como chamá-lo, senão de inusitado, esse conto de fadas cômico-melodramático que começa com um crime, o sequestro da atriz Marina (Victoria Abril)?
Como os grandes autores no cinema, Almodóvar faz sempre o mesmo filme, com pequenas variações. A essência é a mesma: as ferramentas do cinema de gênero servem a um realizador cioso por dar um tapa na cara da sociedade (com charme, é claro). O tapa, em Ata-me!, é uma moça “respeitável” (a atriz) apaixonar-se por um seqüestrador amoral (Antonio Banderas, quando ainda queria ser ator de verdade, não um burocrata da atuação).
Nesse conto de fadas elegante, está em jogo não só o amor, mas também o cinema. Temos o longa que nos é mostrado e, dentro deste, outro que está sendo rodado, protagonizado por Marina Osorio e dirigido por Máximo Espejo (Francisco Rabal). Um filme de terror comandado por um diretor outrora respeitado, hoje paraplégico e decadente, filmando apenas pela ajuda dos amigos (quase como a Norma Desmond de Crepúsculo dos Deuses).
Todo o conteúdo humanista de Ata-me não está na belíssima e brega sequência final ou nos movimentos de câmera que ganham classe com a música de Ennio Morricone. O esforço humano de sair da perspectiva egoísta e colocar-se no lugar do outro está na cena em que Máximo, na cadeira de rodas, devora sua atriz-fetiche na tela de TV.
Sua mulher o espreita, mas não diz nada. Cala-se e entende. Como julgar um homem que não consegue mais fazer o que deu sentido à sua vida: dar vazão ao desejo e fazer cinema?
Mais do que no amor da atriz pelo sequestrador, Ata-me! representa o caráter humanista do cinema de Almodóvar nessa cena em que Máximo devora a imagem de sua atriz.
Não é coincidência que esse plano vá reverberar num dos planos mais bonitos de A Pele que Habito, na qual Antonio Banderas, cirurgião psicótico e traumatizado, imagina o sexo com sua cobaia, Vera, apenas mirando-a por uma imensa televisão.
Leia mais: A Pele que Habito é a maior frustração de 2011
Leia mais2: Maus Hábitos e o lado traiçoeiro do amor
Festival de Brasília 2011
Começou ontem, segunda, 26, a 44ª edição do Festival de Brasília, o evento mais tradicional do cinema brasileiro, palco de discussões, lançamentos de filmes e propostas político-estéticas. Neste ano, muitas mudanças até difíceis de colocar só em um parágrafo: alteração da data, queda do ineditismo, fim da mostra digital (que encurtou a participação dos curtas), ampliação dos espaços de exibição...
Neste ano, vou acompanhar à distância: o cansaço bateu, o corpo pediu para continuar em São Paulo e o atendi, apesar da curiosidade em acompanhar a repercussão das mudanças.
Mas, para quem está interessado em acompanhar o debate, quatro indicações diferentes:
- matéria que publiquei ontem no Cineclick entrevistando diversos setores e tentando ampliar as discussões
- artigo do crítico Luiz Zanin Oricchio, de O Estado de S. Paulo, que aponta um apequenamento do festival com as decisões equivocadas de 2011.
- artigo do crítico Cid Nader, do Cinequanon, que pede uma certa prudência da crítica em já qualificar as mudanças como ruins (discordo de alguns pontos, mas acho válida a colocação).
- leitura integral do blog Festival de Brasília em Perigo, que recupera o processo de mudanças antes mesmo de elas serem anunciadas e explica todas as polêmicas dos bastidores.
Enfim, leituras obrigatórias para quem se interessa pelos rumos do mais tradicional festival de cinema brasileiro.
Neste ano, vou acompanhar à distância: o cansaço bateu, o corpo pediu para continuar em São Paulo e o atendi, apesar da curiosidade em acompanhar a repercussão das mudanças.
Mas, para quem está interessado em acompanhar o debate, quatro indicações diferentes:
- matéria que publiquei ontem no Cineclick entrevistando diversos setores e tentando ampliar as discussões
- artigo do crítico Luiz Zanin Oricchio, de O Estado de S. Paulo, que aponta um apequenamento do festival com as decisões equivocadas de 2011.
- artigo do crítico Cid Nader, do Cinequanon, que pede uma certa prudência da crítica em já qualificar as mudanças como ruins (discordo de alguns pontos, mas acho válida a colocação).
- leitura integral do blog Festival de Brasília em Perigo, que recupera o processo de mudanças antes mesmo de elas serem anunciadas e explica todas as polêmicas dos bastidores.
Enfim, leituras obrigatórias para quem se interessa pelos rumos do mais tradicional festival de cinema brasileiro.
sábado, 24 de setembro de 2011
Maus Hábitos ou A Pele que Habito - Parte 2
Acima do tom cômico, Maus Hábitos (Entre Tinieblas, 1983) é um filme sobre a fascinação do mal.
Esta, porém, é apenas um lado da moeda. Do outro, está o amor como dependência e abuso que dela convém. Esta é a natureza das personagens do quarto longa de Almodóvar: fascinadas pelo mal ou pelo pecado, mas também víboras que usam o amor do outro como chantagem. Freiras dúbias de nomes esquisitos – Irmã Esterco é uma delas.
A fascinação pelo mal e a chantagem da do desejo é uma dualidade que acompanharia o cinema do espanhol por muito tempo. Mais recentemente, reverberou em Má Educação (o padre que abusa de uma criança que, quando adulta, extorque o religioso, sedento de amor) e A Pele que Habito, seu filme mais recente que chega ao Brasil em novembro.
Maus Hábitos é um grande momento da carreira de Almodóvar, ainda em sua fase anarco-punk, que dura mais ou menos até 1984 com Que Fiz Eu Para Merecer Isto?. É o período que mais me seduz de seu cinema, dos tipos underground e viciados, inversão absurda dos valores, amoralidade no tratamento de temas clássicos, ares meio cafajeste.
É um momento em que ele investe muito numa postura iconoclasta. Como definir, senão assim, um filme que coloca a madre de um convento como uma viciada em heroína que mantém retratos de “pecadoras” (Brigitte Bardot entre elas) em seu escritório? Ou uma freira que, de tanto tomar ácido, vê a realidade adulterada em cores? Ou outra freira futriqueira que descobriremos ser autora de romances policialescos baratos?
Mesmo nesse cenário caótico, o desejo e o amor é quem mandam, e Almodóvar não tem perde o juízo. Luc Moullet, crítico francês e cineasta, do qual já falei nesse post aqui, definiu: “A moral é uma questão de travelling”. Godard, na época de crítico, inverteu e fez uma provocação: “O travelling é uma questão de moral”.
Sendo um ou outro, Pedro Almodóvar parece estar 100% consciente das decisões morais e de julgamento num mero movimento de câmera. No belíssimo plano final, quando compartilhamos da imensa dor de uma personagem, a câmera se afasta com profundo respeito.
Maus Hábitos é mais um exemplo de como A Pele que Habito deu errado. Ambos se dedicam a falar dos dois lados de uma moeda. A diferença é que em 1983 estava muito claro para o realizador qual era o tom que pretendia dar a seu filme. Em 2011, não está.
Em tempo: abaixo, uma grande cena do filme:
Esta, porém, é apenas um lado da moeda. Do outro, está o amor como dependência e abuso que dela convém. Esta é a natureza das personagens do quarto longa de Almodóvar: fascinadas pelo mal ou pelo pecado, mas também víboras que usam o amor do outro como chantagem. Freiras dúbias de nomes esquisitos – Irmã Esterco é uma delas.
A fascinação pelo mal e a chantagem da do desejo é uma dualidade que acompanharia o cinema do espanhol por muito tempo. Mais recentemente, reverberou em Má Educação (o padre que abusa de uma criança que, quando adulta, extorque o religioso, sedento de amor) e A Pele que Habito, seu filme mais recente que chega ao Brasil em novembro.
Maus Hábitos é um grande momento da carreira de Almodóvar, ainda em sua fase anarco-punk, que dura mais ou menos até 1984 com Que Fiz Eu Para Merecer Isto?. É o período que mais me seduz de seu cinema, dos tipos underground e viciados, inversão absurda dos valores, amoralidade no tratamento de temas clássicos, ares meio cafajeste.
É um momento em que ele investe muito numa postura iconoclasta. Como definir, senão assim, um filme que coloca a madre de um convento como uma viciada em heroína que mantém retratos de “pecadoras” (Brigitte Bardot entre elas) em seu escritório? Ou uma freira que, de tanto tomar ácido, vê a realidade adulterada em cores? Ou outra freira futriqueira que descobriremos ser autora de romances policialescos baratos?
Mesmo nesse cenário caótico, o desejo e o amor é quem mandam, e Almodóvar não tem perde o juízo. Luc Moullet, crítico francês e cineasta, do qual já falei nesse post aqui, definiu: “A moral é uma questão de travelling”. Godard, na época de crítico, inverteu e fez uma provocação: “O travelling é uma questão de moral”.
Sendo um ou outro, Pedro Almodóvar parece estar 100% consciente das decisões morais e de julgamento num mero movimento de câmera. No belíssimo plano final, quando compartilhamos da imensa dor de uma personagem, a câmera se afasta com profundo respeito.
Maus Hábitos é mais um exemplo de como A Pele que Habito deu errado. Ambos se dedicam a falar dos dois lados de uma moeda. A diferença é que em 1983 estava muito claro para o realizador qual era o tom que pretendia dar a seu filme. Em 2011, não está.
Em tempo: abaixo, uma grande cena do filme:
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