segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Limite, de Mário Peixoto: renascimento do olhar cinéfilo

Cópia restaurada de Limite também foi exibida no Auditório Ibirapuera no final de 2011

 Qualquer pessoa que tenha a chance de assistir a Limite no cinema, mesmo numa sala desconfortável como a do Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo ou numa cópia deteriorada como a exibida pela necessária Mostra Jairo Ferreira – Cinema de Invenção, é um afortunado.

Limite é a coisa mais impressionante que qualquer um de nós assistiu ou assistirá no cinema brasileiro. Pensar que ele é o que é e foi realizado em 1931 torna-o muito mais do que uma obra-prima – o que já não é pouco, convenhamos –, mas um filme que a cada sessão te deixa boquiaberto e pensando: mas como Mário Peixoto fez isso?!

Essa obra-prima silenciosa que apaixonou Martin Scorsese a ponto de motivá-lo a restaurar o filme dentro da World Cinema Foundation é de uma juventude perturbadora, um filme-acontecimento acossado por um contagiante espírito de risco. Não é apenas uma pedra fundadora, obra fundamental para conhecermos nosso passado cinematográfico, mas também um filme que precisamos rever constantemente para termos nosso olhar sobre o cinema renovado.

Limite é um colírio. É um filme que a cada sessão provoca o renascimento do olhar cinéfilo.




Na sala de cinema, ele toma proporções maiores. A antológica representação da mulher “acorrentada”, imagem que ilustra este post, torna-se ainda mais dramática. As sequências de arrebentação, do mar se chocando com as pedras, é ainda mais dolorida e poética. O encontro de três personagens à deriva no mar, cada um com uma história particular, é algo inesquecível.

A um espectador contemporâneo, Limite provoca uma curiosa sensação de mergulho e afastamento: estar na cena (tomando cena como o jogo que se estabelece entre filme-espectador na sala de cinema) e observar-se de fora.

Estando dentro do filme, o encantamento surge a cada cena, a cada plano. Estando fora, vem a pergunta de como Mário Peixoto chegou àquele resultado com tantas restrições de produção? Por exemplo: quando o personagem masculino berra à procura de uma mulher, a câmera faz um movimento rasante em direção à boca e à orelha do personagem. Tal manejo se parece muito com o uso que o fotógrafo de Terrence Malick faz da steadicam em A Árvore da Vida, manejando constantemente a câmera de encontro aos personagens e, assim, criando fluxo, movimento - que não me xinguem pela comparação os que não gostam do filme de Malick.

Só que Peixoto fez isso em 1931 com aquelas geringonças pesadíssimas! E a câmera no barco? E a câmera na extremidade do trem? E os planos fechados nas mãos do personagem segurando um cigarro?

O que dizer também da narrativa? Não há as chamadas cartelas/intertítulos a explicar para o espectador quais são os diálogos. Tudo se articula no nível da imagem, acompanhada de uma trilha vigorosa, que vai e vem, misturando-se hibridamente e reintroduzindo repetidamente a música-tema.

Ficamos divididos em algo como espectador-historiador. O espectador se alumbra, o historiador questiona “mas como isso foi feito?”.

Voltarei a falar nos próximos dias da Mostra Jairo Ferreira – Cinema de Invenção, razão para que Limite, o único longa-metragem que Mário Peixoto chegou a completar, foi exibido no CCBB-SP. Por hora, fica o registro encantado de rever esse filme no cinema.

Limite não morrerá jamais. Isso é certo.


Em tempo: a amiga Michelle Ferret, já citada desse blog no post "A Crítica Está Morta?", publicou no começo do ano passado um inspirado texto sobre Limite, dando mais atenção à questão do tempo no filme e no raciocínio de Mário Peixoto. A íntegra está neste link.

2 comentários:

Ravi Santana disse...

Vi pela primeira (e segunda) vez na tela grande no auditório do Ibirabuera, com música ao vivo. Apesar da experiência incrível, vi ainda mais como a trilha sonora é marcante em Limite. Nesta sessão, a trilha era outra, e perde muito da força. E concordo, Heitor, que seja um filme para ser revisto. Tento assistir ao menos uma vez por ano. Abs

Heitor Augusto disse...

Ravi, estava viajando durante a exibição no Auditório Ipirapuera. Uma pena porque, apesar de o som do auditório não ser tão bom, a cópia era restaurada.

Assim como você, tenho ouvido muitos comentários contrários à nova trilha. Não a conheço, mas pergunto: é mesmo a trilha ou uma dificuldade nossa, em quem assiste, em ver algo do passado embalado sonoramente com algo do presente?

Pergunto isso porque as reclamações com trilha sonoras novas em cima de filmes mudos são sempre objeto de discussão (e reclamação) nas exibições do Cine Ouro Preto (MG) ou da Jornada do Cinema Silencioso (SP).

Abs,
Heitor