de Gramado, Rio Grande do Sul
Brasileiro tem mania de autoridade. Sérgio Buarque de Holanda, em “Raízes do Brasil”, aprofunda a idéia de cordialidade, traço que marca o país desde a escravidão. É a relação que permite um contato entre classes sociais diferentes que não altera nem uma vírgula das diferenças sociais (os estratos continuam o mesmo). Com os anos, fomos criando uma mania de dar crédito apenas ao que tem um ar de autoridade. O popular vira folclore, pra guardar num museu, e o erudito ganha status de cultura, merecedor de respeito.
Na música, é mais ou menos assim: os ex-office boys Claudinho e Buchecha gravam “Fico Assim Sem Você” e a canção é considerada de “baixa qualidade”; a Adriana Calcanhotto regrava e a classe média pronuncia um sonoro “ahh, como é bonitinho!”.
E ontem, aqui em Gramado, foi dia do erudito e acadêmico virar muleta e jogar o popular, que brilha sem filosofar, para escanteio. O curta “Hiato”, do carioca Vladmir Seixas, que participa da mostra competitiva, fala da ocupação que o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) fez no shopping Rio Sul, em Botafogo, em 2000. Sete aos depois, o diretor conversa com alguns militantes que participaram do atos e mescla com imagens de arquivos, que mostram seguranças e atendentes olhando para os favelados com um ar de nojo.
As entrevistas com os pobres (mesmo que prejudicada pela ausência de luz em uma confusa referência à estética da fome de Glauber Rocha) são geniais. Nas falas, a pobreza não ganha nenhuma definição politicamente correta, principalmente com uma senhora, ex-prostituta, que passa a mensagem sem atravessadores.
Mas há sempre a muleta dos acadêmicos. Não contente com a fala de quem participou do ato, o diretor recorre ao documentarista Silvio Tendler, a pesquisadora Ivana Bentes e de um filósofo que, um milhão de desculpas, eu não anotei o nome (e o filme não tem site para consulta).
Ivana, que polemizou no lançamento de “Cidade de Deus” com a idéia da cosmética da fome, chove no molhado no depoimento em “Hiato”. Ela solta um óbvio “as novas mídias possibilitam tomar contato com o fato cru, em tempo real”. E?
Tendler, que ironiza/elogia a estética da fome do diretor do curta, solta um “globaritarismo”. Alguém me explica o que é isso?
Mas a pérola vem do filósofo: ao falar do impacto da ocupação de pobres em um shopping center, ele solta um “choque de intensidade”. Hã? Oi? Como assim? Como diria José Simão, uma linguagem tucanada, mãe do “choque de capitalismo” de Gilberto Gil e do “choque de gestão” de Arruda e Alckimin.
Sem meio-termo, sem desvio de caminho. Para que enfiar um “choque de intensidade” quando um dos ocupantes do shopping já decretara: “os lojistas olhavam pra gente com cara de nojo. E o nojo é deles mesmo, pois o dono mandou apenas baixar as portas, não olhar pra gente daquele jeito. Os balconistas não são ricos! Pergunta se algum deles moram em Botafogo?!”.
Uma aula de consciência de classe dada por um pobre em apenas 30 segundos.
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